Se o sistema é deles, que patrões, bancos e privilegiados paguem a conta
Por Flávio Roberto Batista e Gustavo Seferian*
Bolsonaro não esperou nem colocar a faixa presidencial para alardear qual era a principal missão para a qual foi eleito: a realização da “reforma” da Previdência Social. Junto com outras tantas ameaças às condições de vida da classe trabalhadora – como novas “reformas” trabalhistas, o ataque aos sindicatos, a privatização dos serviços públicos e a criminalização das pessoas que lutam por uma vida melhor –, talvez seja essa a mais violenta e direta pancada que ele e seu fiel escudeiro Paulo Guedes pretendem nos dar.
Verdade que essa história de “reformar” a Previdência Social não é nova. Os ataques aos nossos direitos previdenciários começaram muito antes e, desde a Constituição de 1988, estão sob a mira da patronal. Podemos aqui lembrar do governo FHC, que em 1999 instituiu o fator previdenciário, que come os valores de aposentadoria de quem se aposenta mais novo. E também do governo Lula, que em 2003 criou novos requisitos para aposentadoria no serviço público, reduzindo os valores máximos de aposentadoria e abrindo as portas para a privatização dos fundos sociais por meio da lógica financeira de complementação das aposentadorias.
Os baques foram fortes e não vieram sem resistência. Quem já estava no batente certamente lembra que, com nossa luta, foi possível conter perdas de direitos, que pareciam ser ainda maiores nessas duas ocasiões: FHC, por exemplo, tentou criar a idade mínima já em 1998. Aliás, foi também com a luta e organização de gerações da classe trabalhadora que o direito de descansar depois de tanta peleja foi conquistado. E será difícil tirarem de nós o que conquistamos.
De um jeito ou de outro, aquilo que era um ensaio de “reforma” assume uma forma mais concreta e profunda depois de 2016. Temer vem com tudo para cima de nossos direitos. Conseguiu emplacar algumas medidas – como fixar o teto dos gastos públicos, as “reformas” trabalhistas e a ampliação da terceirização -, mas não deu conta de fazer o serviço todo.
Ficou em aberto justamente o desmonte da Previdência Social, barrado nas ruas com uma greve geral e manifestações de massa país afora que colocaram medo no Congresso Nacional. Até porque parte imensa dos lares brasileiros depende dos recebimentos de benefícios da Previdência Social. Pode observar: quem ao seu redor recebe alguma aposentadoria ou pensão? O que seria de sua vida, e da vida dessas pessoas, se esses benefícios não existissem ou tivessem dificuldades para sair?
Sai Temer, entra Bolsonaro e os governos do patrão não esquecem da missão. E se conseguimos conter a proposta de antes, essa agora reaparece ainda mais violenta, ainda mais perversa, para tentar ser emplacada. Mais uma vez, a ideia de “reforma” vem pintada como se fosse sem escapatória, indispensável para o país não quebrar. Mas essa quebradeira é uma farsa e, nos argumentos mirabolantes de quem tem interesses na “reforma”, aparece como um jogo de números que não fecha. Além de a conta não ser assim tão simples, por ser um direito, e não um serviço, são necessários investimentos públicos para bancá-la.
Fora essa mentira, o que pretende o Bolsonaro nos fazer engolir? Primeiro, quer colocar fim à aposentadoria por tempo de contribuição, exigindo obrigatoriamente que se alcance uma idade mínima – 62 anos para mulheres e 65 para homens – para poder aposentar. E com um agravante: para receber valores integrais, teremos que contribuir 40 anos! Para o professores e professoras, policiais civis e outras categorias as exigências vêm ainda mais pesadas. O caso mais violento é o do trabalho no campo, em que também querem impor idades mínimas - de 60 anos – e tempo de contribuição – 20 anos – para poder descansar, o que é um tremendo absurdo, até pelas particularidades do meio rural.
Como perversidade para essa gente não tem fim, alguns outros ataques ainda mais profundos estão nessa agenda: a redução do Benefício de Prestação Continuada (BPC), destinado a pessoas com necessidades materiais mais urgentes (como idosas e com deficiência), que pretendem abaixar do valor do salário mínimo para míseros R$ 400,00, e a lógica privada de capitalização dos novos segurados e seguradas da Previdência.
Esse modelo, para além de direcionar aos bancos o controle e lucros sobre os fundos previdenciários, já demonstrou não dar nada certo onde foi implementado. É o caso do Chile, em que as pessoas, dada a quebradeira financeira, recebem valores baixíssimos quando se aposentam e, não tendo condições de sobreviver, acabam vivendo na penúria ou tirando as suas próprias vidas. Há uma onda de suicídios de pessoas idosas por lá.
Também para aumentar a arrecadação, de outro lado, quer Bolsonaro jogar lá em cima os valores que mês a mês pagamos para bancar a Previdência. Poxa, por que razão nós, e sempre nós, teremos que pagar essa conta? De fato, os cofres da Previdência Social devem ser abastecidos.
Mas não soa mais lógico quem tem mais, pagar mais? Podemos começar com a execução das dívidas das grandes empresas junto ao INSS, que chegam a quase meio trilhão de reais. Daí seguir com a taxação das grandes fortunas e o fim da farra dos bancos, com a auditoria da dívida pública. Tudo isso ia deixar uma bela gordura para a Previdência Social – e outros direitos sociais indispensáveis, como educação e saúde públicas – queimar.
Isso entre outras tantas mudanças, que pela falta de espaço não temos como aqui colocar. Não tem nada de bom nem nessa, nem em outras propostas de “reforma” que nos tirem direitos. Nada que compense.
Toda atenção é pouca nesses próximos meses. Seja quanto às táticas para aprovação da “reforma” (retirando alguns ataques mais violentos, e deixando outros tantos nada bons para nós), seja quanto à nossa necessidade de mobilização.
Busque seu sindicato, conheça de perto como sua categoria será diretamente afetada pela “reforma” que pretendem emplacar, bem como os meios de dar corpo a essa necessária resistência.
Felizmente, pela incompetência e a carência de direcionamentos, a rasteira de Bolsonaro e Guedes ainda não veio. Mas virá. Temos que estar preparados para pular desse rabo-de-arraia e contra-atacar.
De fato, ninguém quer que o país quebre. E ele não vai quebrar. A única coisa que há tempos merece romper é essa lógica que só joga nas nossas costas a responsabilidade pelo funcionamento dessa sociedade que não nos serve, que a nós só reserva exploração, privação e sofrimento.
Se o sistema é deles, que paguem a conta os patrões, os bancos e os privilegiados! “Reforma”, não para cima de nós!
*Flávio Roberto Batista é professor da Faculdade de Direito da USP; Gustavo Seferian é professor da Faculdade de Direito e Ciências do Estado da UFMG
Edição: Daniela Stefano