Depois de quatro meses de protestos intensos que culminaram na queda do presidente Omar Al-Bashir, o Sudão enfrenta agora incerteza sobre quais forças políticas irão prevalecer na disputa pelo poder no país. De um lado, os militares que garantiram a deposição de Bashir; de outro, a população que se mantém mobilizada para exigir a instauração de um governo civil para construir uma transição democrática depois de 30 anos sob o mesmo regime.
Os protestos no Sudão começaram a ganhar força em dezembro, a princípio contra o aumento do preço do pão e do custo de vida em algumas regiões. Rapidamente, a mobilização começou a questionar os abusos contra os direitos humanos, o desemprego e a desigualdade.
O jornalista Ahmed Kaballo explicou ao Peoples Dispatch que, enquanto os protestos anteriores no Sudão começavam em geral pela capital Cartum, esta mobilização começou pela cidade do nordeste Atbara e tomou 15 dos 18 estados do país. "Logo ficou claro para o povo sudanês de que este é um momento histórico em que todos os setores da sociedade sudanesa estavam participando, e que o regime não conseguiria reprimir o povo e fazer com que ele parasse de ir às ruas", apontou. "Foi uma mensagem de que eles não conseguiriam matar todos nós."
O modelo econômico neoliberal do regime de Bashir teve um impacto imenso na classe trabalhadora, o que contribuiu para a adesão massiva às manifestações. "Os trabalhadores aderiram aos protestos, desde operários de fábricas que não conseguiam mais comprar pão, porque o preço triplicou de um dia para o outro, até médicos", explica Kaballo. "Não é uma crise só de uma ditadura, mas também uma crise do neoliberalismo."
"O regime sudanês encampou uma guerra no Sudão do Sul e em Darfur, mas também encampou uma guerra contra metade da população: as mulheres", destaca Kaballo na entrevista. "Por isso elas representaram dois terços dos manifestantes, porque não aguentavam mais."
A legislação do Sudão controlava todos os aspectos da vida das mulheres, desde permitir casamento de crianças até limitar a roupa que usavam. Os agentes do Estado tinham permissão de espancá-las e prendê-las se considerassem que estivessem vestidas de maneira inadequada.
O protagonismo das mulheres ficou eternizado em 8 de abril, poucos dias antes da queda de Bashir, na foto emblemática da estudante Alaa Salah discursando em cima de um carro para uma multidão que gritava “revolução!”.
Golpe e revolução
Mas o que está acontecendo no país “é um golpe e uma revolução ao mesmo tempo”, afirmou ao The Real News o professor de ciência política do Departamento de Estudos Africanos da Universidade de Toronto Khalid Ahmed. O acadêmico explica que, inicialmente, o golpe foi planejado pelo Partido do Congresso Nacional (NCP), do próprio Bashir, como uma estratégia de “aparentar uma mudança, na esperança de satisfazer os manifestantes e acabar com o protesto”.
A intenção, segundo Ahmed, era garantir a saída do presidente e, ao mesmo tempo, evitar sua extradição para ser julgado no Tribunal Penal Internacional, em Haia, por crimes de guerra e contra a humanidade.
Foi o próprio ministro da Defesa e vice-presidente de Bashir, Awad Ibn Auf, que anunciou, na quinta-feira (11) a queda de Bashir, mas, como aponta Ahmed, ele também “precisa ser responsabilizado pelo que fez em Darfur”, em que também é apontado por crime de genocídio. Diante da força dos protestos populares, Ibn Auf acabou renunciando também.
No domingo (14), a organização dos protestos apresentou uma lista de demandas para os militares. Além da criação de um governo de transição comandado por civis, a chamada Aliança por Liberdade e Mudança pede a reestruturação do serviço de segurança e inteligência do país - cujo chefe, Salah Abdallah Gosh, renunciou após a queda de Bashir.
O Partido Comunista do Sudão diz que a proposta dos militares de comandarem um regime de transição é uma tentativa de roubar a revolução do povo. Sindicatos e movimentos estão convocando a população a se manter mobilizada para continuar a luta popular por um governo civil de transição.
Nesse sentido, explica o cientista político, as manifestações continuam fortes mesmo após a derrubada e prisão de Bashir. “É uma revolução no sentido de que se está exigindo mais do que foi dado até agora. Não é suficiente ter militares, não é bom para a população ter dois anos de conselho militar pela frente”, analisa. Por conta disso, os manifestantes querem a dissolução do NCP e afirmam que não sairão da frente da sede do Exército enquanto não tiverem a garantia de um governo civil de transição.
O conselho militar que derrubou Bashir anunciou inicialmente um plano de ficar no poder durante dois anos, mas voltou atrás depois da repercussão popular negativa. O mesmo conselho também se nega a extraditar o presidente deposto.
*Com informações de Peoples Dispatch, The Real News, Al Jazeera, Washington Post e The Guardian
Edição: Pedro Ribeiro Nogueira