Em meio aos entulhos de um galpão abandonado no bairro da Mooca, zona leste de São Paulo, centenas de famílias que moravam na Favela do Cimento tentam reconstruir seus barracos. A área que os moradores ocupavam há anos, localizada a três quadras do galpão no entorno do Viaduto Bresser, foi alvo de um incêndio generalizado e de uma reintegração de posse no último fim de semana.
A ação estava marcada para as 6h do domingo (24), mas, de acordo com moradores da comunidade ouvidos pelo Brasil de Fato, o incêndio e a reintegração começaram ao mesmo tempo, durante a madrugada.
“A gente estava dormindo, com as crianças. Começamos a acordar no meio do fogo e foi aquele desespero. Eu tirando minha filha que tem sete meses, é uma bebezinha. Nós começamos a gritar, não deu tempo de tirar nossas coisas. Perdi o botijão de gás, roupa da minha filha, fralda”, conta a moradora da favela, Vitoria da Silva Santos, com sua filha Talita no colo. “Essa princesinha quase pegou fogo”, diz, lamentando o ocorrido.
A Prefeitura de São Paulo afirma que a Polícia Civil está investigando as origens do incêndio, que causou a morte de uma pessoa. Já os moradores relacionam a chegada das forças policiais ao local com o início do incêndio.
“Foram lá, aproveitaram que estávamos dormindo e tocaram fogo no barraco da gente. A gente vive com nossas crianças de boa, só a polícia chegar que começa a bagunça lá dentro. Lá não tinha traficante. Era só pai e mãe de família”, continua Vitoria, enquanto se alimenta de uma refeição feita na cozinha coletiva, improvisada no lado direito do galpão.
O barulho das crianças brincando se mistura ao som das batidas dos martelos utilizados na construção dos novos barracos de madeira e alvenaria. O cenário, precário, também é composto por muita movimentação. De um lado, uma comissão que recebe as doações enviadas às famílias. Do outro, os ocupantes trabalham coletivamente para retirar os entulhos do espaço.
Segundo a Prefeitura, 215 pessoas moravam na Favela do Cimento, entre elas 66 crianças. Do total de moradores, 74 foram encaminhados para centros de acolhimentos públicos e outras 3 receberam passagens para ir para outra cidades ficar com familiares. O restante se concentra no galpão, próximo ao metrô Bresser Mooca.
Mesmo após duas reuniões de conciliação, muitos moradores não concordaram em deixar a área do Cimento para ir para os centros de acolhida. Rosiane Aparecida Moreira da Silva explica o porquê.
“[O centro de acolhida] é uma prisão. Não temos o direito de ir e vir. Não temos direito de cozinhar. É como se vivêssemos no sistema penitenciário, não temos autonomia nenhuma ali. Nós não queremos isso, queremos uma oportunidade. Só uma oportunidade”, afirma, comparando os aparelhos públicos ao regime semi-aberto.
Rosiane e sua família perderam móveis, documentos e até mesmo um animal de estimação. Ela descreve que a Guarda Civil Metropolitana (GCM) começou a se aproximar da Favela do Cimento no início da noite de sábado. “Quando a gente foi ver, o fogo pegou. Começou a pegar fogo em todos os barracos. Só deu tempo da gente sair correndo com as crianças, porque não estávamos esperando. Muita gente aceitou ir pro CTA e estávamos esperando a desocupação [no dia seguinte], para sairmos de boa, tranquilo”, acrescenta.
Benedito Roberto Barbosa, advogado da União dos Movimentos de Moradia de São Paulo, também considera que a Prefeitura não oferece uma alternativa habitacional que garanta que as famílias não voltem para a situação de rua.
“Muitas pessoas não aceitam mais esse processo de tutelação, de serem tuteladas pelo Estado, e gostariam de ter, de fato, uma moradia ou algum tipo de acolhimento habitacional que pudesse ser uma coisa digna”, defende Barbosa.
A reportagem entrou em contato com a Prefeitura de São Paulo para pedir um posicionamento, e, em resposta, recebeu o link com uma matéria publicada em seu site oficial. O texto registra uma declaração de José Castro, secretário de Assistência e Desenvolvimento Social, na qual ele afirma que os assistentes sociais da Prefeitura continuarão conversando diariamente com os moradores que não aceitarem ir para os centros de acolhimentos. Os encaminhamentos, segundo o porta-voz, serão feitos dentro do perfil de cada núcleo familiar.
A Subprefeitura Mooca, por sua vez, informou que a área onde ficava a comunidade está sendo reformada e que o espaço será revitalizado.
Truculência
Os moradores também relatam que a postura da GCM e de outras forças policiais presentes no momento foi muito truculenta. O jardineiro Joaquim Nunes da Silva, por exemplo, conta que foi agredido fisicamente e mostra hematomas no braço.
"Eu estava deitado debaixo da ponte, aí chegou um guarda e falou assim: 'Levanta, vagabundo'. E eu falei: 'Moço, eu trabalho, estou em situação de rua'. Mas ele já me deu uma cacetada no braço, outra na cabeça e um chute nas costas", detalha Joaquim, contando ainda que um dos policiais alegou que a pá de jardineiro que carrega no pescoço seria uma arma branca.
Matéria publicada pelo Brasil de Fato no domingo, na manhã após o incêndio, registrou depoimentos de outros moradores que também acusam as forças policiais de violência excessiva. Eles alegam que a GCM utilizou balas de borracha e cassetetes.
Em nota, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP) afirma que “policiais militares realizaram o patrulhamento na área e utilizaram técnicas de controle de distúrbio civis para dispersar manifestantes que tentavam interditar a via.”
“A PM não compactua com desvios de conduta de seus agentes e orienta que quaisquer denúncias sobre a atuação dos policiais sejam formalizadas por meio da Corregedoria da Polícia Militar”, diz o texto.
Já a GCM disse em nota que a denúncia não procede e nega que tenha sido usado bombas, balas de borracha ou cassetetes pelos guardas.
Detenção
Horas após o incêndio, considerado criminoso, um homem foi detido suspeito de iniciar o fogo. Segundo a Polícia Civil, o homem detinha um galão plástico de 20 litros, vazio. Porém, os moradores afirmam que o rapaz detido também era morador da favela.
Frei Agostinho Theotokos, da Pastoral do Povo de Rua e da comunidade Voz dos Pobres, chegou à comunidade do Cimento às 22h, onde permaneceu durante a madrugada e acompanhou a detenção do homem acusado.
“Davam 'cutucão' por baixo, no baço, na linha de cintura. Deu para ver que foi bem agressivo. Antes de colocarem ele na viatura, jogaram ele no chão, deram chutes e ainda pisaram na corrente da algema", censurou.
Em seguida, o frei disse que o homem em questão estava apenas ajudando os demais a tirarem suas coisas de dentro dos barracos. "Em nenhum momento eu presenciei ele segurando alguma coisa que poderia ser de risco ou causar um incêndio. Deu para perceber que era uma forma de criminalizar e jogar a culpa em alguém", argumenta.
Histórico
Frequentes nos noticiários, chamas destruindo barracos de comunidades em São Paulo não são uma novidade. Para investigar as ocorrências, criou-se em 2011 uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI). A comissão foi encerrada sem dados conclusivos em 2012, mas apontou que entre 2009 e 2012 foram 1.643 incêndios em favelas da cidade.
A alta ocorrência suscita questionamentos sobre a relação da especulação imobiliária com incêndios propositais. Em resposta, o mapeamento colaborativo “Fogo no barraco” foi criado com o objetivo de registrar as favelas destruídas pelo fogo e cruzar dados com a especulação na cidade. Atualmente o projeto estar fora do ar.
No ano seguinte, levantamento da Pública em parceria com o Guardian Cities revelou que comunidades atingidas estão localizadas em áreas cerca de 75% mais valorizadas que a média. A matéria jornalística afirma que, em 2016, foram 202 casos de favelas incendiadas e, em 2017, 81, conforme informações disponibilizadas pelo Corpo de Bombeiros.
A reportagem do Brasil de Fato entrou em contato com a assessoria da corporação para obter dados atualizados, mas foi informada que os bombeiros não realizam mais uma contagem de incêndios em favelas e sim de edificações, no geral. Ou seja, não é possível discriminar quantos incêndios atingiram essas comunidades, casas ou apartamentos.
Futuro incerto
Poucos dias após verem suas casas e pertences serem queimados, os moradores da Favela do Cimento que se abrigam no galpão abandonado na Mooca temem o que acontecerá a partir de agora.
“O dono [do galpão] logo vai tirar a gente daqui e não temos pra onde ir. Nossa salvação era o Cimento. Tinha doação, recebemos médicos, que levavam a gente pro posto. E agora?”, questiona Victoria da Silva Santos. “O que nós queremos é um canto, que o prefeito dê ao menos moradia para gente. Tem um monte de prédio fechado. Não custa pegar as famílias e colocar dentro do prédio”.
De acordo com dados do Departamento de Controle da Função Social da Propriedade da Prefeitura, publicados em 2016, a cidade de São Paulo tem mais de 2 milhões de metros quadrados de imóveis “não utilizados”, “subutilizados” ou “não edificados”, áreas que poderiam ser usadas para atender à demanda por habitação na capital.
Rosana Bachieri, que estava trabalhando no sábado e quando chegou na favela já havia perdido todos os seus pertences, concorda que deveria existir outra política habitacional. “Para tirar as ocupações, tem que ter casa para botar o pessoal”, ressalta.
Assim como Vitoria, Rosana também está com medo do que pode acontecer com os ocupantes do galpão abandonado caso haja uma nova reintegração de posse. Sobre o que esperar, ela resume em três palavras: “Só Deus sabe”.
Edição: Aline Carrijo