DESCONHECIDA

Crítica| A Dica foi santa

A História de Benedita Cipriano Gomes, líder comunitária que dividia a terra igual, entre os anos 20 e 30, em Goiás

Brasil de Fato | João Pessoa (PB) |
Peça teatral Santa de Dica foi apresentada dia 14 de março, no Teatro de Arena, do Espaço Cultural.
Peça teatral Santa de Dica foi apresentada dia 14 de março, no Teatro de Arena, do Espaço Cultural. - Divulgação

Estava com tanta vontade de assistir a peça Bentida Dica que cheguei bem cedinho. Só não cheguei primeiro que as atrizes, o ato, o produtor e o moço do som.

O sol estava se pondo e os raios batiam em cheio na Empanada vermelha toda bordada de retalhos e fuxico, parecia um pé de Gameleira bem florido. A frente da empanada um balcão e do lado dois tamboretes.

Não demorou para as arquibancadas do teatro de arena ficarem empoleiradas de gente. Jovens, adultos, crianças, velhas e velhos, todo mundo curioso para saber quem danado tinha sindo Dica.

Quando pensei que não, pum, pum, pum, pum... foi o som do zabumba emprestado e as vozes bonitas entoando canções anunciando o princípio da peça.

Como se estivem organizando os preparativos para festa do divino, a mesma organizada por Benedita Cipriano Gomes, conhecida como Dica, em Lagolândia-GO, as personagens (duas primas e um primo) vão narrando os fatos históricos marcantes da trajetória da líder comunitária, que criou, entre os anos 20 e 30, uma grande comunidade que dividia a terra por igual e construiu um cotidiano baseado nos princípios de igualdade, solidariedade e produção coletiva.

Teatro de Arena em João Pessoa. / Divulgação.

A fama do modo de vida com justiça social se espalhou pelos sertões, pela boca dos tropeiros e viajantes. Por onde passavam anunciavam a boa nova. É o que podemos observar na cena do casal onde o marido se queixa para esposa de que o patrão pegava há cinco meses a metade do seu salário para cobrir as despesas com viagem. Sendo que o combinado era de descontar só durante três meses. O marido aponta para cuia com feijão e diz: eu tenho que pagar pelo feijão que eu planto. Antes que o marido faça alguma besteira, a esposa o convence a irem viver na comunidade de Dica, dentre outras coisas, porque lá, hum, lá não tem patrão!

É lógico que essa comunhão toda não agradou os poderosos de sua época que ficavam maquinando formas de destruir a comunidade. Essa cena foi apresentada através mamulengos, onde o prefeito, o fazendeiro e padre, representantes do poder, conspiram contra as aspirações de quem só queria viver em paz, com terra e igualdade.

A Dica era uma mulher muito religiosa e, segundo relatos, conversava com Os Anjos para tomar os conselhos e melhor conduzir a comunidade. Por esse fato, a comunidade também era conhecida como a República dos Anjos. Nesse momento, entrou em cena a própria Dica que ganhou vida através da manipulação de uma Boneca, que representava sua personagem. Bem singela, Dica lava o rosto, ajoelha-se e reza. Depois levanta, pega um ramo e benze sua cama e a plateia. Um pingo de água benta pegou em mim!

Numa de suas revelações, Dica recebeu a mensagem de que a comunidade ia ser atacada e ia chover fogo. Ela estava certa, atendendo os pedidos de fazendeiros, padres e políticos, o governo do Goiás enviou tropas para acabar com a República dos Anjos. No balcão, na frente da Empanada, preparando os doces para festa do divino, as atrizes dispuseram as fôrmas de doce como se fossem as tropas que se enfrentaram no episódio, que ficou conhecido como O Dia do Fogo.

O conflito foi intenso e deixou três mortos. Contam que os soldados atiravam em direção de Dica, mas as balas enroscavam em seus cabelos ou batiam na aba do seu vestido e caiam no chão sem a ferir. Dica deu ordem para que todos fugissem pelo Rio do Peixe. Ela sobreviveu a esse ataque e peregrinou pelo Brasil sempre espalhando seus ideais de igualdade. Já no final da vida, Dica regressa a Lagolândia-GO, onde morre no dia 9 de novembro de 1970, sendo sepultada debaixo de uma gameleira em frente a sua casa, conforme foi seu desejo.

Pois bem, no planalto central do Brasil, há uma companhia que faz teatro “como quem usa a mão/Para fazer um pão/Colher alguma espiga” (Belchior). Um teatro que une Brecht e Boal, militante e engajado, com a missão de contar as Histórias daquelas e daqueles que lutam pela terra. Muito obrigado Cia Burlesca por me proporcionar essa revelação, que foi conhecer a Santa Dica!

*Militante da Consulta Popular

Edição: Heloisa de Sousa