Um fantasma pairou sobre o movimento dos coletes amarelos na França. Insultos racistas foram proferidos por manifestantes no dia 17 de fevereiro contra o filósofo Alain Finkielkraut na mesma semana que suásticas foram pichadas em 90 túmulos de um cemitério judeu próximo a Strasbourg. A repulsa ao antissemitismo fez com que milhares de pessoas comparecessem a um protesto em Paris. Enquanto a líder da extrema direita, Marine Le Pen, tentava responsabilizar fundamentalistas islâmicos pelas agressões, o presidente Emmanuel Macron propôs novas medidas punitivas ao antissemitismo e apontou para uma criminalização do antisionismo, por considerar que ele seria uma atualização do antissemitismo. Vozes mais lúcidas como a da historiadora Annette Wieviorka e do sociólogo Dominique Vidal lançaram um alerta para o perigo da associação direta entre os dois conceitos e aos possíveis usos políticos dos crimes antissemitas.
Em uma França constantemente acuada diante de questões migratórias e da ascensão de grupos nacionalistas, o movimento dos coletes amarelos parece estar hoje em uma sinuca de bico. Desde novembro de 2018 sua ação política foi marcada pela ambivalência e pela violenta negação da ordem vigente. Embora aproximações possam ser feitas com as jornadas de junho de 2013 no Brasil, é preciso um certo cuidado na comparação de diferentes contextos. O resultado dos coletes amarelos ainda é incerto, mas seus desejos disruptivos vêm forçando os atores políticos a redefinirem estratégias e a acionarem diversas formas de controle social para restabelecer a ordem pública.
Um presidente dos ultra-ricos
Depois de 30 anos de implementação das políticas neoliberais na França, a eleição de Macron em 2017 sedimentou o fim do welfare state. Em uma sociobiografia do presidente, os sociólogos Monique Pinçon-Charlot e Michel Pinçon expuseram com detalhes a trajetória meteórica do ex-sócio-gerente do Banco Rothschild e a inserção crescente de gestores financeiros no âmbito do Estado. A administração pública tornou-se dependente do capital das empresas corporativas. O coroamento dessa parceria foi tanto a integração de tecnocratas ao primeiro e segundo escalões do governo federal quanto a distribuição de “presentes fiscais” pelo presidente.
A entrada de Macron na política ocorreu em 2014, quando assumiu o Ministério da Economia, Indústria e Assuntos Digitais no governo do socialista François Hollande (2012-2017). Macron concebeu então um pacote de políticas de austeridade que abrangia a revisão da carga tributária, a flexibilização das leis trabalhistas e cortes orçamentários dos serviços públicos. As mudanças impetradas conduziram paulatinamente a uma guinada liberal e resultou em fissuras estruturais no tradicional modelo social-democrata francês.
Uma onda de protestos, bloqueios e greves se abateu sobre o país, varrendo para segundo plano da cena política o Partido Socialista, que nas eleições presidenciais seguintes obteve insignificantes 6,3% dos votos no primeiro turno. Para se diferenciar de Hollande, Macron fundou em 2016 o República Em Marcha, pelo qual concorreu ao pleito. No segundo turno, cerca de 20 milhões de votos foram para sua candidatura, 10 milhões para a de Le Pen e mais de 15 milhões foram votos brancos, nulos e abstenções. Seu governo começava, assim, com uma base de apoio instável.
Macron se tornou o primeiro presidente a ter coragem de dizer que as políticas de favorecimento aos mais ricos iriam também beneficiar os mais pobres, uma fórmula atualizada da antiga máxima da ditadura brasileira: “é preciso fazer o bolo crescer para depois reparti-lo”. Suas primeiras medidas foram as mais impopulares, como a reforma do Imposto de Solidariedade sobre a Fortuna que excluiu a taxação sobre os investimentos financeiros dos que possuíam um patrimônio superior a 1,3 milhões de euros. Os ricos. A revogação significou uma queda na arrecadação de mais de 4 bilhões de euros. Para reequilibrar as contas públicas, o governo aumentou o imposto de outros bens de consumo, como o combustível, que viu uma escalada galopante de preços.
Reavivando a tradição contestatória francesa, manifestantes portando coletes amarelos foram às ruas em contraposição ao “presidente dos ricos”. O equipamento de segurança obrigatório nos veículos por permitir visibilidade na estrada em caso de emergência passou então a simbolizar a ampla gama de setores populares que esperava ter suas queixas e necessidades ouvidas pelo governo. O espírito insurrecional que se instalou desde então vem suscitando sentimentos variados, como de entusiasmo, incompreensão e também de medo.
Os coletes amarelos desorganizam o cotidiano e abalam as instituições. Suas reivindicações desafiam tentativas de enquadramento político. Eles exigem a saída do presidente, a dissolução da Assembleia, uma participação horizontal na tomada de decisão. Não querem ser governados por políticos privilegiados, não querem a violência da polícia, não querem taxas injustas. Desejam pagar suas contas, viajar, descansar. A pauta é vasta e heterogênea.
A França dos precariados
O que acontece hoje na França é o resultado de um governo que se tornou incapaz de operar como administrador do bem público. O pacto social foi desfeito e as manifestações dos coletes amarelos refletiam essa desestruturação. A composição do movimento era de pessoas de baixa renda, autoempreendedores, chefes de empresas muito pequenas, aposentados e pensionistas. Isto é, pessoas confrontadas cotidianamente com o Estado: fosse sentindo como excessiva sua presença através de impostos, taxas, normas e papelada de toda ordem; fosse traduzindo como ausência as políticas de redução de serviços públicos e auxílios sociais.
As redes sociais desempenharam um papel importante no movimento. Através de grupos de Facebook os coletes amarelos planejaram, convocaram e se comunicaram continuamente. Porém, a principal forma de ação se deu via território. A maioria dos manifestantes morava em comunas rurais e áreas periurbanas e compartilhavam trajetos diários pelas estradas francesas. Eles sofriam com as mesmas dificuldades decorrentes da escassez de transporte público e da necessidade de utilizarem cotidianamente seus carros para vencerem longos trajetos até pontos comerciais, escolas e hospitais.
Como não possuíam vínculo com postos tradicionais de trabalho, os coletes amarelos não se viam representados pelas reivindicações sindicais. Tampouco se reconheciam como um movimento identitário clássico, como os que giram em torno de demarcadores socioculturais de gênero, raça, etnia ou religião. A identidade evocada pelo uso dos coletes era fluida e cambiável, podendo ser literalmente vestida ou despida por qualquer um que se solidarizasse com uma de suas inúmeras pautas. Muitos sentiam orgulho em declarar ser a primeira vez que protestavam nas ruas. A maioria não participava de organizações partidárias.
De acordo com o Libération, o movimento dos coletes amarelos tinha sido um desdobramento do movimento En Colère, que em janeiro de 2018 havia bloqueado alguns pedágios nas estradas. Eles tinham ficado enraivecidos com a promulgação de uma lei que reduzia a velocidade permitida nas estradas de 90 km/h para 80 km/h. A intenção expressa pelo governo era diminuir os acidentes de trânsito, mas no movimento a lei foi percebida como uma maneira cínica de encher os cofres públicos com as multas geradas pelos radares. Uma compensação econômica ao rombo tributário deixado pela supressão do “imposto dos ricos”.
Outro movimento ligado à mobilidade dos moradores reapareceu só em meados de maio, em função de novo aumento de preços dos combustíveis. A revendedora de cosméticos Priscilla Ludosky elaborou então uma petição pública online contra o aumento que, ao chegar em outubro com mais de 1 milhão de assinaturas, foi divulgada pelo Le Parisien. No mesmo mês, a acordeonista Jacline Mouraud gravou um vídeo no Facebook com mais de 5 milhões de visualizações, onde manifestava sua raiva também contra outras propostas do governo que afetavam a mobilidade, como a ampliação do número de radares e pedágios nas estradas. Na sequência, o caminhoneiro Eric Drouet criou um evento no Facebook conclamando para o sábado de 17 de novembro um grande bloqueio nacional das estradas e o encontro dos enraivecidos em Paris. Nascia o movimento dos coletes amarelos.
Uma revolta contra a desigualdade
Dissonantes da tradicional liturgia dos movimentos sociais, os coletes amarelos expressavam sua indignação por meio de “atos” dramáticos que se desenrolavam ao longo de sucessivos sábados. O Ato I contou com cortejos pelas ruas de diversas cidades como Paris, Toulouse, Bordeaux, Lyon e Rennes, e ainda com inúmeros bloqueios de estradas e depósitos petrolíferos. Segundo dados oficiais, 287 mil pessoas foram para as ruas.
Algumas características se tornaram estruturantes de sua ação política. Os coletes amarelos não possuíam uma direção centralizada, mas coordenações fragmentadas. Muitos organizadores dos cortejos e bloqueios foram irreverentes em relação às regras estabelecidas para os eventos cívicos, não registrando local de concentração, percurso e duração das manifestações nas prefeituras de polícia. Também não informaram se haveria segurança própria ou não durante os protestos, dificultando o cálculo do efetivo policial necessário para a manutenção da ordem pública.
Uma perplexidade em relação ao Ato I foi expressa pelo responsável pelas forças da ordem, o ministro Christophe Castaner. Foram registrados mais de 2 mil agrupamentos por todo território francês, 500 a mais do que havia sido declarado nas prefeituras. A consequência foi a ineficácia em restabelecer a normalidade de vários pontos de ocupação, fazendo com que alguns bloqueios perdurassem até a terça-feira. Castaner então acusou o movimento de “radical” e “à deriva”, por causa de sua falta de representação política, culpando os manifestante pelas 528 pessoas feridas.
A despeito da estigmatização do movimento como baderneiro, nos três sábados seguintes os cortejos e bloqueios se repetiram com média de 140 mil adeptos. A partir do Ato II, uma importante clivagem da estratégia foi aumentar a concentração de agrupamentos nos bairros da elite parisiense. A intenção era subverter os espaços dos que concentravam a renda nacional, dos que pagavam poucos impostos, dos que eram servidos por transportes, hospitais e escolas públicas de qualidade. O inverso do que os manifestantes vivenciavam.
O impacto midiático foi estrondoso. As imagens de Paris em chamas circularam pelo mundo. Grupelhos de extrema direita começaram a ser apontados como infiltrados no movimento, trazendo desconfiança em relação aos coletes amarelos. O discurso de Castaner mudou de tom, passando a acusar Marine Le Pen como responsável pela radicalização e pelo viés nacionalista de alguns manifestantes que portavam a bandeira da França e entoavam a Marseillaise. As acusações reverberavam o medo dos franceses e da imprensa internacional da ascensão do fascismo na Europa. O líder do partido de extrema esquerda, Jean-Luc Mélenchon, questionou o suposto protagonismo da extrema direita reforçando a pauta de combate aos privilégios fiscais dos ricos. A batalha das ruas se converteu em uma batalha pelos sentidos atribuídos ao movimento. Diversas interpretações sobre os coletes amarelos passaram a circular pela imprensa e via Twitter.
Resposta do governo não agrada
Com a intenção de reconquistar a confiança dos coletes amarelos, o Ministro da Ecologia, François de Rugy, recebeu as lideranças Priscilla Ludosky e Eric Drouet para conversarem sobre o projeto de transição ecológica que o governo vinha tentando atrelar ao aumento da taxação de combustível, argumentando ser um meio de diminuir a emissão de gás carbônico. O encontro se tornou um grande fiasco.
Depois das tentativas frustradas de apaziguar os ânimos, a palavra de ordem “Fora Macron!” foi entoada com mais fervor. A partir do Ato III, o movimento se radicalizou e o governo mobilizou um efetivo policial inédito, resultando no acirramento de confrontos. A violência nas manifestações paulatinamente ganhou importância na construção da narrativa governamental. A estratégia foi então deslocar os debates sobre a distribuição de renda para a ocorrência de atos de vandalismo. Para Castaner, “a pauta dos coletes amarelos era justa, mas estava sendo infiltrada por elementos estranhos, oportunistas e antidemocráticos”. Ressurgia a sombra dos grupos de extrema direita, só que na forma da oposição “pacíficos” versus “vândalos”.
Na mesma semana Macron fez seu primeiro recuo político, anunciando a suspensão por seis meses do aumento do valor dos combustíveis. Ato contínuo, um colete amarelo declarou aos jornais: "Os franceses não querem migalhas, eles querem a baguete inteira”. O movimento seguia insistindo na revisão tributária e na distribuição das riquezas. Novas manifestações foram confirmadas para o sábado seguinte, dessa vez recebendo a adesão de estudantes do ensino médio, trabalhadores rurais e da construção civil. O Ato IV foi marcado pela ampliação da repressão policial, com a detenção de 1.700 pessoas.
Grande Debate Nacional versus RIC
A reaparição de Macron na televisão no dia 10 de dezembro provocou um importante ponto de inflexão no movimento. O presidente afirmou ter ouvido o clamor das ruas e propôs medidas que atenderiam às principais reivindicações dos coletes amarelos. Entre elas, o aumento de 100 euros do salário mínimo, que beirava 1.500 euros brutos para os contratados em tempo integral; a desoneração do pagamento de tributos sociais sobre horas extras trabalhadas; e a suspensão do reajuste de um tributo sobre a aposentadoria dos que recebiam até 2.000 euros por mês.
A efetividade dessas ações para aumentar o poder de compra da população e diminuir a desigualdade social, no entanto, foi contestada por especialistas e pelos próprios coletes amarelos. O argumento era que, na prática, poucos se beneficiariam delas. Seria assim um falso atendimento às demandas, que buscava encobrir o prejuízo causado à receita nacional pela modificação do imposto sobre as grandes fortunas, ação que Macron continuou se recusando a rever.
De qualquer forma, o pronunciamento trouxe como aspectos importantes a negociação parcial da pauta econômica e a proposta de realizar durante dois meses, entre 15 de janeiro e 15 de março, um Grande Debate Nacional para pensar os “temas centrais da vida francesa”. Com esta ação, Macron buscou uma forma de institucionalizar a revolta dos coletes amarelos, devolvendo o protagonismo para os atores políticos governamentais e pressionando o movimento a apresentar seus mediadores.
Uma instabilidade brotou nos diferentes grupos de coletes amarelos, que começaram a discutir se deveriam ou não ter representantes junto ao governo. Com surpreendente capacidade de resposta, eles conseguiram reorganizar sua pauta, deslocando-a do “custo de vida” para a discussão das formas populares de participação política. No sábado seguinte, questionamentos sobre a “democracia representativa” ganharam destaque em cartazes que reivindicavam a realização do Referendum d’Initiative Citoyenne (RIC), que permitiria o exercício de uma democracia direta.
Agora o foco da revolta não eram só as medidas econômicas que atingiam os desfavorecidos, mas um sistema político que privilegiava os ricos e as empresas corporativas. Reverberando a nova pauta, grupos passaram a atacar símbolos representativos do sistema, como a casa da moeda, a bolsa de valores e a Assembleia.
Enfraquecidos em relação aos sábados anteriores, os coletes amarelos mantiveram mobilizadas uma média de 48 mil pessoas por mais quatro atos, em especial em Bordeaux, Toulouse, Nantes e Lille, cidades que passaram a ganhar mais visibilidade. Os jornais especulavam sobre a diminuição do número de manifestantes em Paris: teria sido reflexo das medidas de Macron, uma aversão às cenas de vandalismo, o frio glacial fatigante, o medo dos tiros de bala de borracha e das granadas, a proximidade das festas natalinas?
O ano de 2019 começou com o aumento da coação do governo para que os coletes amarelos indicassem interlocutores e o debate político saísse das ruas. O amplo espectro de partidos que se localizavam na direita, no centro e na esquerda se mostrou pouco convencido dos efeitos do Debate Nacional, mas se dispôs a ajudar o presidente a institucionalizar o conflito. As exceções foram os partidos localizados nos extremos da direita e da esquerda.
Os coletes amarelos, por seu turno, não ficaram alheios às movimentações partidárias. Um setor lançou uma lista de candidatos a deputados para as eleições do Parlamento Europeu em maio de 2019, sendo alvo de críticas virulentas dentro do movimento. A lista foi inviabilizada pela saída de muitos de seus candidatos, em especial da liderança Ingrid Levavasseur, que alegou não aguentar mais a pressão. Entre os coletes amarelos, continuaram com autoridade as lideranças que mantiveram uma postura mais horizontal, não adotando caminhos da democracia representativa para a resolução da crise.
Guerra de versões
O primeiro dia do Debate Nacional contou com a presença teatral do presidente que, durante seis horas, respondeu a perguntas de 300 prefeitos em transmissão ao vivo. Seu envolvimento pessoal nos debates teve boa repercussão e Macron passou a se encontrar toda semana com jovens, moradores de áreas rurais, chefes de pequenas empresas, e demais segmentos. Fazer lives deixou de ser então prerrogativa dos movimentos horizontais.
Em outra frente, Castaner investiu na repressão ostensiva aos coletes amarelos, pauta que também foi incorporada à agenda da grande mídia. Com a polarização entre vândalos e pacíficos o governo procurou ampliar a penetração da sua narrativa de defesa da ordem contra a desordem, da democracia contra o autoritarismo, da responsabilidade política contra a irresponsabilidade, resgatando até mesmo o medo latente dos atos terroristas.
A ira dos coletes amarelos, contudo, não foi apaziguada. A partir do Ato IX, em meados de janeiro, as manifestações voltaram a crescer com a adesão de cerca de 80 mil pessoas por mais três sábados seguidos. Havia uma indignação com os meios inapropriados de contenção policial utilizados nos conflitos, em especial o uso de granadas explosivas, instrumento de dispersão condenado nos demais países europeus pelos ferimentos graves que causavam. E indignadas também com a crescente criminalização do movimento, que teve centenas de manifestantes interpelados, julgados e condenados em velocidade surpreendente.
Dessa forma, enquanto o governo se queixava de vitrines quebradas e carros incendiados, os coletes amarelos mostravam mãos e pés amputados, rostos desfigurados, prisões, mortes. Três episódios em especial chocaram a população e tiveram efeito mobilizador contra os abusos policiais. A detenção provisória de Drouet, transmitida ao vivo pela TV, acusado de “organizar uma manifestação não declarada”. As imagens do ex-boxeador Christophe Dettinger enfrentando quatro policiais ao se ver acuado com sua família no meio de um confronto. E o tiro de bala de borracha no olho de Jérôme Rodrigues, reconhecido entre os coletes amarelos como “pacífico”.
A despeito do aumento de manifestantes nas ruas, em janeiro os coletes amarelos começaram a perder a popularidade. Se no início eles eram apoiados por 71% dos franceses, em meados de fevereiro eles contavam com 50% de simpatizantes. Um movimento de sustentação ao presidente chegou a ganhar as ruas em 27 de janeiro: os “lenços vermelhos”, que reuniu 10 mil manifestantes em Paris para pedir o fim da “violência das manifestações” e dos bloqueios nas estradas e clamar a defesa da liberdade, do espírito republicano e das instituições. Mesmo incapaz de repetir a mobilização, os lenços vermelhos sinalizaram um certo cansaço da população em relação aos coletes amarelos.
Identidade do movimento ainda está em construção
O movimento dos coletes amarelos está inserido em um contexto de acirramento das desigualdades sociais e de crescente pauperização das classes médias. Sua explosão é um grito de alerta de que a linguagem do mundo da política está em curto circuito. Há um distanciamento cada vez maior entre as representações políticas e as aspirações da população.
Sua disrupção marca hoje o fim de um pacto celebrado no pós-guerra e de intensificação de políticas neoliberais na França. É a anunciação de algo distinto do que era antes. A heterogeneidade das pautas informam que eles não são nem de direita e nem de esquerda, nem revolucionários e nem fascistas. Mas carregam em si todos esses potenciais. O desafio imposto às forças progressistas é exatamente não atribuir aos coletes amarelos uma identidade fixa, mas perceber que essa identidade está em disputa.
Se as mobilizações indicam insatisfações justas, cabe aos movimentos organizados proporem formas de reflexão e de ação conjuntas para que uma identidade de viés autoritário e fascista não se torne dominante por causa da mera aversão às irrupções violentas. Uma sociedade mais igualitária e inclusiva só poderá ser construída através da escuta interessada das insatisfações. E a rua ainda parece ser a melhor barreira para impedir a ascensão do totalitarismo. Como bem filosofou uma manifestante em fevereiro: “imagino que entre os revolucionários de 1789 não tinham apenas democratas”.
*João Paulo Macedo e Castro é antropólogo e professor associado da UniRio. Membro do Núcleo de Memória Política e coordenador do Laboratório de Análise da Conjuntura, ambos da UniRio. Pós-doutorando na EHESS, Paris. Roberta Sampaio Guimarães é antropóloga e docente do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Uerj. Pesquisadora do Cidades - Núcleo de Pesquisa Urbana/Uerj. Pós-doutoranda na EHESS, Paris.
Edição: Vivian Virissimo