Uma circular interna endereçada aos superintendentes regionais do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) recomenda que, a partir de agora, "entidades que não tenham personalidade jurídica" não sejam atendidas pelo órgão.
A orientação foi enviada na noite desta quinta-feira (21) e é assinada pelo novo ouvidor agrário do Incra, o coronel do Exército João Miguel Souza Aguiar Maia de Sousa.
Na prática, a medida orienta os funcionários do Incra a não receberem organizações que não tenham CNPJ — o que é o caso da maioria dos movimentos populares, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
O deputado federal Nilto Tatto, do núcleo agrário do Partido dos Trabalhadores (PT), considera que a mensagem cristaliza a perseguição aos movimentos populares, anunciada pelo presidente de extrema direita Jair Bolsonaro (PSL) desde a campanha eleitoral. Além disso, ele afirma que o ato é inconstitucional e fere o direito à livre organização.
"O Estado tem que, por obrigação, ouvir os cidadãos, não importa a forma como eles se organizam", pontua o deputado. "Essa ação atinge o conjunto de movimentos sociais do campo. Não só a luta pela reforma agrária, atinge também a luta dos quilombolas, populações tradicionais e assim por diante", pontua.
O e-mail aos funcionários do Incra também orienta que "não deverão ser atendidos invasores de terra" e que esses casos "devem ser notificados conforme a lei".
O jurista Carlos Marés, ex-procurador geral do estado do Paraná, afirma que a sugestão do ouvidor tem o objetivo de romper relações institucionais com o MST. Mas ele afirma que a medida não possui nenhum lastro jurídico. "É uma recomendação ruim, anti-jurídica, mas não tem nenhum efeito. O que ele está querendo dizer, e não tem coragem, é que não se receba o MST", avalia.
"É muito mais uma politicagem do que efetividade. Agora, obviamente é uma barbaridade", completa Marés, que afirma ainda que o ouvidor agrário extrapolou suas obrigações legais com o envio do e-mail.
Nilto Tatto considera este item inconstitucional porque a legislação prevê que áreas que não atendem à função social da terra são passíveis de serem destinadas para a reforma agrária. "Se o movimento ocupar eles vão chamar a polícia e não tocar adiante da implementação daquilo que está garantido na Constituição", pontua.
Para o coordenador nacional do MST, Alexandre Conceição, a recomendação incentiva a violência no campo e os conflitos por terra.
"É uma nota infeliz porque tenta fechar o diálogo, como se a política e os recursos públicos fossem deles, quando é constitucional e pertence ao povo brasileiro", diz o dirigente. "As associações camponesas vão continuar exigindo a continuidade da reforma agrária e as desapropriações de terras."
Conceição ressalta a contradição da prescrição ter sido assinada pelo ouvidor agrário do Incra. "O trabalho do ouvidor agrário é justamente ouvir as pessoas que estão na luta pela terra para poder, inclusive, encontrar soluções para os conflitos que ocorrem por causa da concentração. Se ele renuncia ouvir os trabalhadores, ele vai ouvir quem?”, questiona o coordenador do MST. “Não faz mais sentido ter ouvidoria agrária, então."
"O Estado brasileiro é mais amplo que o Executivo e nós vamos exigir da Justiça, do parlamento e do povo brasileiro a continuidade da reforma agrária", finaliza.
O Brasil de Fato entrou em contato com a assessoria de imprensa do Incra, mas não obteve resposta até esta publicação.
Edição: Mauro Ramos