As integrantes da Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e Gratuito na Argentina convocaram para esta terça-feira (19), às 19 horas, uma manifestação para dar início às mobilizações pela legalização do aborto no país, apresentada por meio do Projeto de Lei de Interrupção Voluntária da Gravidez (IVE na sigla em espanhol). As atividades reúnem milhares de mulheres em dezenas de cidades argentinas. Na capital, Buenos Aires, o ato político ocorre em frente ao Congresso da Nação.
Chamado de Dia de Ação Verde pelo Direito ao Aborto, o 19 de fevereiro entrou para o calendário feminista porque marca a comemoração do primeiro pañuelazo realizado na Argentina. Os protestos com panos verdes, que tiveram repercussão mundial, foram o estopim de uma jornada massiva para legalização do aborto em 2018.
Aquele é considerado um ano histórico para o debate sobre os direitos sexuais e reprodutivos na Argentina. Pela primeira vez, o Congresso aceitou discutir -- e aprovou -- o Projeto de Lei redigido pela Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e Gratuito, que existe há quase 14 anos. No entanto, no dia 9 de agosto, o Senado vetou o projeto.
Apesar da derrota parlamentar, a ampla mobilização realizada pelas mulheres argentinas se tornou uma referência para feministas de todo o mundo, que lutam para conquistar o mesmo direito.
O Brasil de Fato conversou com algumas das protagonistas da marea verde (em português, "maré verde") no país vizinho para saber quais são as perspectivas para a luta pela legalização do aborto em 2019.
Confira a seguir:
Nelly Minyersky, 88 anos, advogada e integrante da Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e Gratuito (Buenos Aires)
"Eu diria que, no ano passado, todas nós que trabalhamos pelo direito à Interrupção Voluntária da Gravidez na política argentina vivemos uma situação épica. Desde 1921, existe um código penal que criminaliza o aborto com penas muito severas, mas que tem algumas especificidades, que diz que o aborto legal em determinadas circunstâncias, como o estupro e o risco de saúde. No entanto, durante décadas, de 1921 até agora, nossa vida sexual esteve marcada por uma eventual condição de delito se ficamos grávidas, em uma gravidez não desejada, e levamos adiante a interrupção.
Dizemos que a criminalização do aborto submete a todas as mulheres, mais além daquelas que podem ser condenadas. Porque é um claro exemplo de como o sexismo domina nossa autonomia, liberdade, nossos corpos e possibilidades de poder escolher ter uma família. A gravidez forçada é uma espécie de tortura e há anos estamos lutando na campanha pelo aborto, que é um movimento territorial, democrático e transversal que já apresentou mais de 17 projetos que não prosperaram.
Mas, ano passado, diante da possibilidade de ser aceito e ser debatido, apresentamos um projeto e esse projeto teve um êxito muito grande, foi aprovado na Câmara de Deputados. Infelizmente, no Senado, que é mais conservador, alcançamos um número importante de senadores apoiadores, mas não tivemos a maioria.
Apesar disso, nas ruas estavam mais de um milhão e meio de pessoas, sobretudo jovens e adolescentes, que apoiaram nosso projeto, nos encheram de alegria. Por isso, dizemos que ainda que o projeto não tenha sido aprovado, que não tenhamos ainda a legalização, conseguimos a despenalização e a legalização social, mudamos a imagem na sociedade. Assim, apesar de não ter acontecido a legalização, sim, causamos um impacto enorme na sociedade, conseguimos ter voz nos meios, conseguimos mostrar que não somos monstros, que somos pessoas que lutamos pela dignidade e direitos humanos".
María Rosa Vega, 30 anos, dirigente feminista da organização de favelas La Poderosa (Rosario)
"Para nós, a mobilização foi muito importante. Isso [o aborto] que era tratado como tabu, algo que ficava guardado, bastante difícil para muitas de nós, que assim como eu, tínhamos dificuldade de falar...E como está proibido até hoje, falar de aborto era um tema tabu, que deixávamos aí, mas fomos entendendo e vendo que em nossos bairros havia a necessidade de debatê-lo. Que nossas companheiras morriam por fazer abortos clandestinos, e só aí a gente ficava sabendo. Fomos vendo e desenvolvendo a ideia de buscar informações e tratar a partir de outra perspectiva, porque nós mesmas e nossas familiares morriam por usar um cabide para interromper a gravidez.
Somos nós, as mais pobres, as que não têm dinheiro para comprar os comprimidos ou informação suficiente para fazer um aborto num lugar seguro. E nunca houve um diálogo, mas no ano passado tudo mudou e eu mesma pude entender, e pudemos estabelecer, em consenso, que lutaríamos para que mais nenhuma garota morra por aborto.
No começo, foi bastante duro porque muitas ficaram contra e outras estavam a favor, mas seguimos trabalhando o tema com muitas informações, para ver que no nosso próprio bairro isso estava acontecendo e sendo deixado de lado. Mas hoje estamos nós mesmas lutando pelo aborto legal e seguro, pelo direito a decidir, para que mais nenhuma adolescente morra por aborto clandestino.
Falando por nós, que moramos nas favelas, chegamos ao Congresso [em 2018] para falar por nós mesmas, e foi muito ruim ver que a lei não foi aprovada. Parece que valemos menos para o Estado, porque seguimos passando fome, na mesma pobreza, com muitas necessidades. Têm muitas pessoas que falam por nós, sem deixar que possamos falar por nós mesmas e defender o aborto legal para não morrer por aborto clandestino e por todas as coisas que seguem acontecendo nos nossos bairros".
Maria del Valle Aguilar, 36 años, militante da Frente de Mulheres e Igualdade de Gênero da organização La Campora (Buenos Aires)
"Em 2018, conseguimos que pela primeira vez na história [do país] o direito ao aborto fosse debatido no Congresso Nacional com uma meia sanção. Longe de ver como uma derrota que não tenha sido suficiente para conseguir a sanção completa da lei, acredito que foi uma vitória do movimento feminista, que conseguir tornar público o debate.
Neste ano, o projeto da Campanha pelo Aborto Legal voltará a ser apresentado e seguramente também outros projetos, que venham reparar uma dívida histórica da nossa democracia com as mulheres e pessoas gestantes. Este é um ano eleitoral e diferente daqueles que acreditam que não convém debater este tema em anos eleitorais, tenho certeza de que será parte das plataformas políticas e dos debates, porque é um tema que se instaurou em toda a sociedade argentina.
Neste sentido, tampouco se pode ignorar o grande lobby por parte de setores conservadores vinculados às Igrejas, que vem pressionando os legisladores para que o tema não seja tratado.
Por isso, o ano começa com uma convocatória massiva e federal para um Pañuelazo, o dia 19 de fevereiro, ação que abriu, no ano passado, a agenda de atividades e se transformou no dia nacional de ação pelo direito ao aborto. E continuará durante março, durante a greve nacional de 8 de março, que exigirá o fim do ajuste econômico que afeta duplamente as mulheres, implementar o plano nacional de violência de gênero, quando só este ano temos mais de 30 vítimas de feminicídios e travesticídios, pelo direito à interrupção voluntária da gravidez e o cumprimento de todas as leis vinculadas aos direitos sexuais e reprodutivos".
Diana Broggi, 33 anos, diretora de Políticas Feministas da Universidade Nacional de La Plata e diretora da Mala Junta (La Plata)
"O ano de 2018 é considerado, para muitas de nós, um marco histórico da luta pelo aborto legal. Mas o que sempre dizemos também é que chegar a conquistar tantos níveis de visibilidade e legitimidade na sociedade tem a ver com uma tradição histórica de muitos anos antes e com a própria criação da Campanha Nacional pelo Aborto Legal, Seguro e Gratuito na Argentina. Então este ano, assim como ano passado, será também um ano histórico, a campanha está reeditando o projeto, voltará a apresentá-lo novamente, talvez com algumas modificações.
Por outro lado, em termos de mobilização, seguiremos articulando a demanda de forma indeclinável em todas as instâncias de mobilização da agenda feminista do país desde o 8 de março, passando pelo 13 de junho, as atividades pensadas agora para a greve feminista estão pensadas também nesta chave, de retomar a demanda vinculada ao aborto legal. E as formas de diálogo de forma geral vão desde pequenas ações até grandes ações.
Agora, no dia 19, que é o dia da ação, realizaremos uma ação contundente de visibilidade ampla, nos manifestando neste sentido, mas temos também as ações micro, pequenas, que tem a ver com o trabalho de base que realizamos permanentemente, nas escolas, nos bairros, fazendo com que cada vez mais pessoas possam debater e se livrar de prejuízos e ideias pré-concebidas que existem sobre a sexualidade e do aborto. Então, lutamos em todos os planos e todas as trincheiras para que possamos conseguir e conquistar o direito a decidir sobre os nossos corpos".
Marta Alanis, 69 anos, fundadora e integrante de Católicas pelo Direito a Decidir (Córdoba)
"Neste 19 de fevereiro, celebra-se um ano do grande pañuelazo que fez tremer as estruturas patriarcais na Argentina. Conseguimos chegar ao Parlamento e embora a lei não tenha sido aprovada no Senado, foi aprovada pela sociedade. Quase 2 milhões de pessoas, em sua maioria mulheres, se mobilizaram ao redor do Senado. Milhões de pañuelos verdes em todo o país. Isso não tem volta. Em 2019, ano eleitoral, seguiremos lutando, mas é um ano complexo, com uma grande crise econômica e política, perseguição a lideranças sociais e repressão.
Criamos uma comissão redatora do novo projeto de aborto legal e em meados de março ele será aprovado na plenária nacional da Campanha e será apresentado novamente na Câmara dos Deputados no final de março".
Edição: Daniel Giovanaz