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"Cultura e arte são os melhores remédios que temos", diz psicóloga

Ariadne Mendes coordena o bloco carnavalesco Loucura Suburbana e alerta sobre os retrocessos na área de saúde mental

Brasil de Fato | Rio de Janeiro (RJ) |

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Bloco Loucura Suburbana tem 18 anos e já se tornou uma tradição no Engenho de Dentro, zona Norte do Rio
Bloco Loucura Suburbana tem 18 anos e já se tornou uma tradição no Engenho de Dentro, zona Norte do Rio - Fernando Maia

No ano de 2001, como parte do processo de desconstrução do modelo do Instituto Municipal Nise da Silveira, o bloco carnavalesco Loucura Suburbana rompeu os muros do hospício e resgatou o Carnaval de rua no bairro do Engenho de Dentro, na zona Norte do Rio. Desde então o bloco tem reunido pacientes, familiares e funcionários da rede de saúde mental, além de moradores do bairro e adjacências. A iniciativa já recebeu diversos prêmios e hoje conta também com um ponto de cultura. 

Num cenário de retrocessos, em que o Ministério da Saúde demonstra interesse em retornar com os manicômios, eletrochoques e internação de crianças, o Brasil de Fato conversou com Ariadne de Moura Mendes, psicóloga e coordenadora do bloco carnavalesco e do ponto de cultura Loucura Suburbana. 

Brasil de Fato: Como nasceu o Loucura Suburbana?

Ariadne de Moura Mendes: Ele nasceu no momento da municipalização. Nós éramos uma instituição do Ministério da Saúde e foi um momento em que a política de desinstitucionalização, de desconstrução do hospício, começava a ficar um pouco mais intensa, um pouco mais delineada, isso ocorreu em 2001. Após a municipalização, construímos uma rede de CAPS que reúne vários bairros. Inicialmente não pensamos em fazer um bloco, os pacientes queriam fazer uma festa interna, mas a ideia já era integrar com a sociedade, começar com esse movimento de desconstrução, de quebra do muro do hospício. E a ideia do Carnaval, vários setores do hospital aderiram e criamos o bloco Loucura Suburbana em dois meses. E foi já um sucesso surpreendente pra gente, com a adesão inclusive dos moradores, não só do bairro, mas de visitantes também.

Aliás, o nome do bloco é maravilhoso e o nome da bateria também.

Essa bateria já foi criada exatamente depois que a gente teve a chancela de ponto de cultura. Em 2010, com a profissionalização, passamos a contratar oficineiros e ter aula de percussão, aula de composição musical e foram os clientes (uma forma de chamar os pacientes da rede de saúde mental) que deram esse nome, de "Insandecida". Antes a gente convidava baterias de escolas de samba porque a gente não tinha. Essa política maravilhosa dos pontos de cultura do Ministério da Cultura, que infelizmente não existe mais, do programa Cultura Viva de então, possibilitou que instituíssemos atividades não só para o desfile, mas também para o dia a dia, que também é fundamental para os pacientes de uma instituição.

E não é só o sucesso do bloco no carnaval e das oficina de percussão. Vocês receberam vários prêmios ao longo do trabalho.

É verdade. Esse dia a dia dos usuários, isso que é o mais importante. Está provado que a cultura e a arte são os melhores remédios que temos, não descartando a necessidade de alguma medicação, de atendimento específicos terapêuticos, mas a cultura e a arte oferecem a possibilidade de criação, de extravasamento, de expressão. Essas histórias de vida ganham significado e adquirirem uma coisa que eu sempre falo, novas identidades. Elas aumentam a sua autoestima, eles se veem de outro modo e a sociedade também. Isso para a gente é a coisa mais bonita e o resultado melhor que se tem.

São 18 anos de um trabalho muito bacana com o Loucura Suburbana e muito mais tempo do trabalho da doutora Nise da Silveira e de outros profissionais que se dedicaram a ter um olhar atencioso, cuidadoso, profissional e generoso para a questão da saúde mental, mas infelizmente parece que hoje estamos dando alguns passos para trás.

Temos um tsunami de retrocessos. A reforma psiquiátrica brasileira é admirada no mundo inteiro, porque é um modelo, uma política de saúde mental acertada, a gente tem prova disso, que é a substituição dos manicômios pelos CAPS, os Centros de Atenção Psico-Sociais. E hoje temos uma nova medida do Ministério da Saúde, que, aliás, já começou no fim do antigo governo, em dezembro, e que agora está se consolidando através do coordenador de saúde mental, o Doutor Quirino Cordeiro Junior, que soltou uma nota técnica em que há um retrocesso absurdo, praticamente o retorno dos manicômios. Nós temos um lema: “manicômio nunca mais”. A gente tem certeza que a iatrogenia (geração de atos ou pensamentos a partir da prática médica),  provoca doença, não cura. E não melhora o estado dos pacientes. E é um retrocesso total inclusive da proposta do eletrochoque, da eletroconvulsoterapia, abolida por nós, ninguém mais usa isso e não precisa. A gente usa o afeto, o acolhimento e o dia a dia partilhado, com uma história que tem significado. Absolutamente não precisamos de métodos tradicionais que só levavam à exclusão. E isso que está sendo proposto de novo. É assustador. 

A gente fica sem palavras diante de uma situação dessas, porque, como você mesma disse, é uma experiência positiva comprovada, dessa reforma psiquiátrica. E o que a gente tem de comprovado dos métodos antigos, dos eletrochoques, da lobotomia, do isolamento? O resultado é o fracasso.

Total. Nós temos ainda, em processo de desinstitucionalização, de ressocialização, algumas pessoas que ainda estão no Instituto Municipal Nise da Silveira que são pessoas que foram internadas crianças e essa nova medida, que é a nova nota técnica, prevê uma coisa que nós abolimos, que é a internação de crianças. Isso é somente em último caso. Nós temos leitos mínimos, praticamente quase nenhum para internação infantil, porque a gente vê o resultado. A internação não faz bem a ninguém. É exclusão, é isolamento. E além de tudo, os métodos antigos eram coercitivos, eram métodos horríveis. Vamos botar o bloco na rua, estamos com muitos sambas escritos e a nossa questão é a resistência e não deixar que a alegria e a certeza do que fazemos morra.

*Entrevista concedida à Denise Viola durante o Programa Brasil de Fato Rio de Janeiro no dia 8 de fevereiro de 2019.

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Edição: Jaqueline Deister