As águas claras do Rio Paraopeba em São Joaquim de Bicas (MG), região metropolitana de Belo Horizonte (MG), foram tomadas pela lama e mudaram de tonalidade. O que antes era cristalino agora tem textura e coloração semelhantes a uma tinta óleo: densa, viscosa, amarronzada. O cenário desolador é agravado pelo odor dos peixes em decomposição.
Um dos principais afluentes do São Francisco, o rio é uma prova viva de que o rompimento da barragem da Vale em Brumadinho (MG), há oito dias, não atingiu somente os moradores do Córrego do Feijão (MG).
:: Minuto a minuto: acompanhe as repercussões do rompimento da barragem ::
Mudanças na rotina
No Acampamento Pátria Livre, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que abriga cerca de 400 famílias, a agricultora Ângela Fernandes Costa mostra, com orgulho, sua plantação de couve, chuchu, quiabo, cebolinhas e condimentos sem agrotóxicos. Além das contribuições para a subsistência das famílias, a comercialização dos produtos na BR 040, no sentido Brumadinho-Betim, é sua principal fonte renda.
Os outros moradores elogiam a organização do barraco de Ângela, que apresenta o espaço que lutou para conquistar. Apesar do momento descontraído -- e do sorriso que se abre ao ser elogiada pelo brilho de suas panelas --, o semblante da sem-terra muda quando o assunto é o rompimento da barragem da Vale.
Ângela comenta que é impossível mensurar o impacto do crime para a rotina do Acampamento Pátria Livre. “Como vamos regar nossas plantas? Não tem como. Vamos pegar o veneno, a lama do rio, e jogar na planta? Se o peixe que está lá está morrendo e não está aguentando, imagina a planta”, compara. “É tudo tóxico. Não temos o hábito de usar nada tóxico nas nossas plantações. Nossa alimentação é saudável. Não quero veneno no meu prato”, ressalta.
A contaminação que os moradores do acampamento Pátria Livre testemunham com seus próprios olhos foi confirmada nesta quinta-feira (31) pela Secretaria de Estado de Agricultura, Pecuária e Abastecimento de Minas Gerais. A Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado de Minas Gerais (Emater) orienta que os produtores rurais não utilizem a água do Paraopeba para irrigação, para consumo animal ou atividades domésticas. “Os mananciais diretamente atingidos pelo rejeito poderão conter substâncias prejudiciais à saúde humana e dos animais. Além disso, a turbidez do rio indica maior quantidade de sedimentos em suspensão, que poderão prejudicar equipamentos de captação de água e de irrigação”, afirmou, em nota, determinando que aqueles que moram às margens do rio permaneçam a 100 metros de distância das águas.
Por isso, muitas das atividades cotidianas do acampamento foram suspensas. "Não tem mais barco porque não tem como atravessar na lama. Estamos sem chão. Vamos ver o que que vai dar. Não sabemos como sobreviver", lamenta Ângela.
Trabalhando na cozinha do acampamento, Dagmar Danatividade da Silva, também admite que está angustiada: “Estamos sem rumo mesmo. A maioria das pessoas pesca para vender, para consumir. Usávamos a água para cozinhar, para tomar banho, para tudo”.
Agroecologia
Aos 73 anos, Ana Margarida Mendes, chamada pelos vizinhos de Dona Ana, é uma das sem-terra mais conhecidas do acampamento. Ao lado do marido, Geci Santiago Mendes, de 67 anos, ela toma conta de uma horta com mais de 50 variedades de frutas e vegetais.
O xodó de Dona Ana são as plantas medicinais: ela garante que não há remédio comercializado nas farmácias que não se encontre em sua horta.
Casada há 42 anos com Seu Geci, a agricultora conta que a vida de ambos mudou muito desde que chegaram ao acampamento, há 1 ano e 6 meses: “De saúde, eu melhorei muito. Eu tomava 18 comprimidos por dia, e agora tem dia que eu não tomo nenhum”.
A tristeza causada pelo rompimento da barragem é perceptível na voz e no olhar de Dona Ana. “É uma ameaça. Através do vento, pode ter contaminação. Tem o mau cheiro que incomoda demais, dos peixes que morreram. Sem contar que a gente pescava o peixinho, de vez em quando, agora acabou. Não temos mais rio para tomar um banho, para lavar uma roupa, para pescar. Não temos mais”, lamenta. “Esse descuido deles custou muito caro pra todo mundo, além das vidas que perdemos”.
Escola ameaçada
No acampamento Pátria Livre, também funciona a escola Elisabeth Teixeira, do Estado de Minas Gerais, que possui turmas do primeiro ao nono ano, ensino médio completo e Educação de Jovens e Adultos (EJA).
A escola fica localizada na parte baixa do acampamento, bem perto das margens do rio Paraopeba. "Se tiver alguma enchente ou acontecer um rompimento, a gente está em área de risco", afirma a estudante Josiane Rodrigues do Santos, de 26 anos. "Tenho crianças pequenas que necessitam de ar livre, que precisam de uma escola".
Histórico
Localizado em São Joaquim de Bicas, o Acampamento Pátria Livre foi montado há um ano e oito meses. As famílias moram no local em barracos construídos com madeirite.
A presença dos militantes do MST mudou a paisagem do local. Áreas de pastagens se tornaram lotes, plantações e hortas. Os moradores reformaram as estruturas físicas, construíram a escola e passaram a discutir com a comunidade a importância da reforma agrária, da agroecologia e da produção de alimentos saudáveis.
Para Josimar Aquino, da coordenação estadual do MST, o rompimento da barragem deve reacender os debates sobre o impacto da mineração no meio ambiente e o perigo que as mineradoras oferecem para a população da Região Metropolitana.
"A Vale está em todo o complexo do médio Paraopeba. Está em Ibirité, Sarzedo, Mário Campos, Brumadinho e Igarapé. E, quando não tem um placa da Vale, são mineradoras que revendem o minério para ela. Quantos rios nós vamos deixar morrer?" questiona.
A área ocupada pelo Pátria Livre pertencia ao grupo falido MMX, do empresário Eike Batista, condenado em 2018 a 30 anos de prisão por corrupção ativa pela Justiça do Rio de Janeiro.
Edição: Daniel Giovanaz