No último dia 15 de janeiro de 2019, foi publicado o Decreto nº 9.685, de 2019, que alterou a regulamentação do Estatuto do Desarmamento (ED). Segundo o texto, passam a ter automaticamente "efetiva necessidade" para adquirir uma arma, além de militares e agentes de segurança pública -- sistema penitenciário, socioeducativo, inclusive --, colecionadores, atiradores e caçadores, habitantes de zonas rurais e donos de comércio ou de indústrias, bem como, qualquer habitante de cidades em unidades federativas com mais de 10 homicídios por 100 mil habitantes, segundo o Atlas da Violência 2018.
Também foi estabelecida a necessidade de declaração do postulante à aquisição da arma que mora em residência também habitada por criança, adolescente ou pessoa com deficiência mental, de que a sua residência possui cofre ou local seguro com tranca para armazenamento. Além disso, o prazo para renovação do registro sobe de 5 para 10 anos; pessoas que já têm armas legalizadas ficam com os registros automaticamente renovados por 10 anos e torna possível a autorização para a compra de até 4 armas de fogo, número que poderá ser maior a depender do número de propriedades, das circunstâncias e da comprovação da "efetiva necessidade".
O novo ato normativo foi celebrado pelo presidente, em publicações em sua rede social: “Por muito tempo, coube ao Estado determinar quem tinha ou não direito de defender a si mesmo, à sua família e à sua propriedade. Hoje, respeitando a vontade popular manifestada no referendo de 2005, devolvemos aos cidadãos brasileiros a liberdade de decidir. Além das inúmeras iniciativas tomadas nestes primeiros dias de Governo, aumentamos de 3 para 10 anos o prazo para a renovação da posse da arma de fogo e acabamos com a subjetividade para a compra, que sempre foi dificultada ou impossibilitada. Esse é apenas o primeiro passo!”
Cidadãos sem proteção
A medida mostra-se absolutamente inadequada, o que pode ser comprovado pelas inconsistentes premissas do próprio presidente.
A rigor, a vontade popular manifestada no referendo de 2005, dizia respeito a um ponto específico do ED, o art. 35, que trata da proibição da comercialização de arma de fogo:
“Art. 35. É proibida a comercialização de arma de fogo e munição em todo o território nacional, salvo para as entidades previstas no art. 6º desta Lei.
§ 1º Este dispositivo, para entrar em vigor, dependerá de aprovação mediante referendo popular, a ser realizado em outubro de 2005.
§ 2º Em caso de aprovação do referendo popular, o disposto neste artigo entrará em vigor na data de publicação de seu resultado pelo Tribunal Superior Eleitoral.”
Portanto, a população rejeitou apenas a proibição da comercialização de armas de fogo, tendo permanecido hígidas as regras para sua aquisição, quais sejam: declaração de efetiva necessidade, comprovação de idoneidade (atestado de antecedentes criminais), ocupação lícita e residência certa, além da capacidade técnica e da aptidão psicológica.
Incontornável o fato de que é inerente ao conceito de “efetiva necessidade” a análise individualizada de cada caso de aquisição. A presunção dessa necessidade, criada pelo novo decreto, afasta a importante avaliação da PF sobre a capacidade dos órgãos de segurança pública oferecerem proteção adequada a esses cidadãos.
Insustentável
Admitir a excepcionalidade da posse da arma implica reconhecer o risco e a vulnerabilidade que representa ao seu possuidor. Logo, cabe ao Poder Público observar e mensurar as diversas dimensões de risco pessoal, familiar e social potencializadas com a posse da arma, sendo inegável que o particular não dispõe de condições para tal análise.
Mais do que isso, o governo editou a norma sem apresentar dados que demonstrassem as supostas arbitrariedades praticadas pela PF na rejeição de registros. A contradição da publicação do presidente na rede social é revelada pela análise de dados que apontam para o crescimento de licenças para aquisição de armas. Segundo dados da PF, seu número passou de 3.029, em 2004, para 33.031, em 2017, ou seja, crescimento de mais de 10 vezes, havendo mais de 600 mil armas em posse de civis no país.
Maioria da sociedade é contra
Outra questão importante refere-se a respeitadas pesquisas que tratam do impacto da circulação de armas no aumento das taxas de homicídio. Para Daniel Cerqueira, do IPEA, o aumento de 1% de armas de fogo eleva em até 2% a taxa de homicídio. Já o Instituto Sou da Paz revela que armas utilizadas em crimes provêm, em sua maioria,da produção e venda legal. Esses dados são cruelmente complementados pelo fato de que cerca de 71% dos mais de 60 mil homicídios no país são praticados com arma de fogo e de que já foram quase 1 milhão de vidas perdidas entre 1980 e 2016 por armas de fogo.
Não é demais ressaltar que a própria população é majoritariamente contra a posse de armas. Segundo o instituto Datafolha, em dezembro, 61% eram contra a posse de armas, em outubro eram 55%. Conclui-se que, o decreto além de contrariar o ED, também contraria a opinião da maioria crescente da população.
É evidente que o decreto fragiliza a sociedade, tornando-a mais vulnerável à violência, com o aumento da circulação de armas, além de esvaziar o papel dos órgãos de segurança pública e do Parlamento no estabelecimento de critérios que envolvem a essência do ED. A sociedade, lamentavelmente, foi alijada de um debate fundamental para a vida de tantos brasileiros e com graves consequências para sua segurança.
*Gabriel Sampaio é advogado e professor de Direito.
Edição: Brasil de Fato