A União Europeia está debatendo o futuro de sua Política Agrícola Comum (PAC). O processos de negociação e debates sobre as novas orientações da PAC chegarão ao fim em 2020, quando serão definidas as novas normas e a regularização da distribuição dos recursos financeiros entre os diferentes setores da produção agrícola entre os países membros da União Europeia. Também não está clara qual será a quantidade e a forma dos subsídios que serão compartilhados entre os países europeus.
As posições são diferenciadas. Há influentes setores que defendem a continuação da produção agrícola industrial e maiores subsídios para os grandes produtores -- o que significa cada vez mais monocultura, extinção de espécies, agravamentos dos problemas de saúde e ambientais. No entanto, vem ganhando cada vez mais força na Europa as posições que defendem uma reforma agrária ecológica e sustentável, com menos uso de agrotóxicos. Em muitas regiões, estão se desenvolvendo experiências interessantes nesse sentido.
Nos últimos dias, Berlim se tornou o palco central da controvérsia entre as diferentes concepções sobre a agricultura que estão polemizando os debates europeus. O motivo é a Feira Agrícola Internacional Semana Verde (Grüne Woche), o "Davos do Agronegócio" -- uma das maiores feiras de produção agroalimentar do mundo, que acontece entre os dias 18 e 27 de janeiro na capital alemã. A feira, realizada desde 1926, tem como tema central deste ano "Agricultura digital, soluções inteligentes para a agricultura do futuro". Mais de 1,8 mil expositores de 61 países mostram seus produtos -- principalmente da agricultura convencional. A previsão é de que 400 mil pessoas passarão pela Feira.
A Semana Verde está marcada pelos debates em torno da Política Agrícola. No início da Feria, a Ministra Federal da Agricultura, Julia Klöckner (CDU), se posicionou contra os cortes financeiros planejados no orçamento agrícola no Conselho Agrícola da UE e mostrou claramente seu interesse em apoiar o lado dos lobistas agrícolas, grandes empresas e corporações.
No mesmo dia 19 de janeiro, ela e seus colegas -- ministros da Agricultura de 73 países -- se reuniram pela Conferência Mundial sobre Alimentação do Fórum Global de Alimentação e Agricultura, que acontece desde 2008 em paralelo com a Semana Verde. No comunicado final da 11ª Conferência, os ministros da Agricultura comprometeram-se a acompanhar as oportunidades e os riscos na agricultura e na sua digitalização.
O contraponto veio em forma de "panelaços", em uma manifestação de mais de 35 mil pessoas. Centenas de camponeses vieram a Berlim com mais de 170 tratores de todas as partes da República para exigir uma agricultura mais ecológica. A convocação veio da Aliança "Estamos cansados disso" (Wir haben es satt), uma articulação que reune vários grupos de camponeses, associações ambientais e de cuidado de animais.
Foram discutidos hábitos alimentares, o impacto do sistema agrícola nas mudanças climáticas e o futuro da agricultura. Uma reforma agrária sustentável era a exigência dos manifestantes o ao gritos de “Estamos cansados disso!”, “acabem com o dinheiro para a agricultura industrial!" e “comer é um ato político”. Em frente do Portão de Brandemburgo, um dos símbolos maiores de Berlim, Saskia Richartz, a porta-voz da Aliança que reúne mais de 100 organizações, declarou “hoje entregamos à ministra da Agricultura Julia Klöckner um mandato explícito de 35.000 pessoas dizendo: acabe com está política agrícola equivocada".
Os manifestantes e camponeses deram uma declaração política a Klöckner e aos ministros da Agricultura de todo o mundo. Além do aumento da promoção da agricultura orgânica, eles destacaram a necessidade de apoio às pequenas propriedades e a prevenção de extinção de pequenas unidades produtivas. Nos últimos dez anos, mais de 100 mil pequenas unidades agrícolas foram eliminadas na Alemanha, resultando em uma maior concentração de terras nas mãos de grandes investidores.
A Aliança pede ao governo federal alemão que lidere uma reestruturação do modelo de agricultura atrasado. Com a atual reforma da Política Agrícola Comum da UE (PAC), o Governo Federal está decidindo qual será a agricultura que será financiada no futuro. Na Alemanha, 6,3 bilhões de euros de fundos agrícolas da UE são distribuídos a cada ano, mais de três quartos deles como subsídios fixos por hectare. Na prática, isso significa que as 3,3 mil maiores unidades produtivas receberão um bilhão de euros por ano, enquanto as pequenas unidades, que totalizam 200.000, terão que dividir quase 700 milhões.
Muitos agricultores ligados à Organização de Pequenos Camponeses AbL (Arbeitsgemeinschaft bäuerliche Landwirtschaft) e várias associações de produtores orgânicos participaram dos eventos e manifestações. Eles exigiram uma preservação consistente do clima e da natureza, mais apoio às pequenas e médias unidades produtivas, melhores condições no cuidado com os animais, fim das exportações subvencionadas com dumping, um comércio mundial justo, maior variedade de sementes, acesso à terra e alimentos saudáveis para todos.
Na véspera das grandes manifestações, a Aliança agrícola solicitou, durante a apresentação do relatório agrícola crítico, os ajustes fundamentais nos subsídios agrícolas. É necessário direcionar os bilhões de Euros para negócios mais fortes, menores e mais orientados para o meio ambiente, disse também Bernd Voß, do Grupo dos pequenos agricultores AbL.
A Aliança lista em seu relatório numerosas aberrações. Pedem a mudança agrícola através de uma alteração do atual sistema de subsídios agrícolas. Ele propõem que no futuro os recursos devem estar ligados à proteção ambiental. Uma vinculação dos programas agrícolas a um modelo mais ecológico de agricultura também é defendido pelos autores do Documento de Estratégia de Agroecologia -- Strategiepapiers Agrarökologie --, que foi publicado durante os protestos da Semana Verde, formulado por mais de 50 organizações.
Além de ações concretas para a proteção do clima e do meio ambiente, a Aliança também abordou a situação dos direitos humanos dos camponeses em todo o mundo. A carta de protesto redigida pelos manifestantes também critica severamente a situação no Brasil e a declaração do presidente Jair Bolsonaro (PSL) de criminalizar movimentos camponeses, como o MST.
Em 2017, o setor agrícola também foi pela primeira vez o "mais letal" do mundo para os defensores dos direitos humanos, afirma a Aliança. “Esta é uma situação intolerável para nós e esperamos um sinal claro de vocês e de sua conferência de que isso deve ser condenado e parar”, afirma a nota. “Nós gostaríamos de lembrá-los que a experiência e o conhecimento camponês são um tesouro que deve ser preservado e protegido. Isso foi registrado em vários acordos da ONU no passado e foi recentemente reafirmado pela Declaração da ONU sobre os Direitos dos Pequenos Produtores”, argumenta os redatores do documento.
As manifestações representaram um avanço na consolidação da organização dos agricultores na Aliança internacional, que vem se fortalecendo nos últimos anos, entre outros motivos pela realização da campanha europeia Good Food Good Farming, apoiada pela Via Campesina Europa e organizações da sociedade civil.
A importância da agricultura e da proteção do clima na Europa também foi tema de outras manifestações nas últimas semanas. Mais de 30.000 estudantes em mais de 50 cidades em toda a Alemanha foram às ruas exigindo a retirada completa da Alemanha da energia do carvão, tema que mobiliza muito o país. A “manifestação escolar” aponta que é são as gerações mais jovens que tem que pagar as consequências das mudanças climáticas das gerações anteriores. No dia seguinte, inúmeros estudantes na Bélgica se juntaram às demandas.
No contexto de redefinição das linhas da Política Agrícola Comum na União Europeia que vai marcar a agenda política do continente durante este ano e com a crise de soluções para as mudanças climáticas, a manifestações tiveram um grande significado político e expressam que os setores populares têm outras perspectivas e projetos para o futuro da humanidade. As mobilizações tendem a continuar.
*Coordenadora do projeto MAIZ-Agricultura em tempos da globalização. Membro do Comitê Amigos do MST na Alemanha.
Edição: Brasil de Fato