Carlos Lungarzo é argentino, residente no Brasil. Graduado em filosofia e matemática, militou no Movimento ao Socialismo (MAS) da Argentina. Em 2008, após a prisão do ativista e escritor italiano Cesare Battisti, resolveu se debruçar sobre as razões da polêmica condenação do militante antifascista na Itália.
“Os cenários ocultos do caso Battisti” desvenda e revela algumas das motivações para a perseguição contra o escritor. Em meio à notícia de prisão do ativista italiano na Bolívia, no último fim de semana, Lungarzo tentou se comunicar com o vice-presidente boliviano Álvaro García Linera, mas sua carta foi interceptada pelos serviços de inteligência.
Battisti foi deportado no último domingo (13) e está na Itália, onde está condenado a duas prisões perpétuas. Veja a seguir a entrevista com o escritor Carlos Lungarzo.
Brasil de Fato: Quando você teve contato pela primeira vez com o caso de Cesare Battisti?
Carlos Lungarzo: Meu primeiro contato com o caso de Cesare Battisti foi em 2008, depois que ele foi detido pela polícia brasileira, em março de 2007. Foi aí que se descobriu que ele não tinha documentos, e apareceu o pedido [de extradição] da Itália. Eu pensei que isso ia ser resolvido rapidamente porque, nos anos anteriores, houve quatro casos de antigos militantes italianos que pediram refúgio no Brasil, e encontraram sem problema. Se eu não me engano, três desses quatro ainda estão morando aqui. Quando eu vi que o assunto progredia, comecei a me interessar pelo processo. Fui visitá-lo na Papuda [complexo penitenciário], conversei com seus advogados, comecei a buscar informação.
Que pessoa você conheceu naquele momento? Quem é Cesare Battisti?
Battisti é como uma criança crescida. É uma pessoa cheia de vida, de ideias. Como toda criança, às vezes é um pouco teimoso, muito imaginativo, muito bom amigo. Ele se interessa por tudo o que você fala, presta atenção.
Por exemplo, quando ele soube quem eu era, me disse: como um matemático pode se interessar por essa questão? Então, eu lhe contei minha história pessoal, disse que eu vivi na Argentina em uma época de ditadura, comecei a proteger pessoas. Enfim, ele é uma pessoa encantadora. E essa é uma visão unânime. Praticamente todos os meus amigos ficaram grandes amigos dele.
O que poderia explicar tamanha mobilização das autoridades da Itália para a prisão de Cesare Battisti?
É uma história um pouco longa. Esta mobilização dos últimos dias é típica de todo país repressivo. Em qualquer país da América Latina, ou países latinos da Europa (especialmente Espanha ou Itália), quando há uma perseguição contra um fugitivo qualquer, se juntam 50, 60 policiais para fazer a operação. É uma maneira de impressionar, porque o repressor é, por natureza, covarde. Então, ele precisa de um grupo bem grande para fazê-lo. Essa é uma questão operacional da polícia. Mas há outra questão que me parece mais importante.
Em primeiro lugar, ele não atuou em nenhuma das quatro mortes que se atribuem a ele. Os delitos que ele cometeu eram todos políticos, coisas como invadir um supermercado para fazer caixa para as ações revolucionárias, ou eventualmente extorquir um torturador para que deixasse de perseguir as pessoas, coisas desse tipo. Como ele, pelo menos outros 1500 estudantes foram presos.
Cesare vinha sendo perseguido dessa maneira tão violenta desde, mais ou menos, o final dos anos 80. E eu acho que isso se deve à sua grande fama como escritor. Cesare escreveu uns 18 livros, e os primeiros eram todos relacionados com dramas de pessoas que viviam sob o fascismo, especialmente na Itália. Essas histórias representavam a realidade de um país onde ainda havia o fascismo. Ele mesmo diz que não existe neofascismo ou antigo fascismo. Ele fala sobre o fascismo real. Por outro lado, fala das torturas, dos crimes violentos, dos crimes nas prisões, da violência social. Isso deixou os italianos furiosos.
Em 1994, quando ele estava sob a proteção do governo francês, várias vezes os fascistas italianos exigiram que a França calasse a boca do Battisti, impedindo que ele desse entrevistas para a rádio ou televisão. Como a França tem muito forte o tema do direito à opinião, eles não fizeram. E isso fez ir aumentando a raiva do governo italiano contra Cesare Battisti. Acho que isso é o que melhor explica tudo isso.
Cesare é muito mais escritor do que militante. Esse caso de Battisti é um caso típico do que chamaríamos de um “assassinato antiiluminista”, como quando queimavam as bruxas nas fogueiras, ou quando os italianos queimaram Giordano Bruno, o filósofo. Não queimaram, mas torturaram Galileu Galilei, então esse é um outro caso parecido.
Em meio à notícia de extradição de Cesare Battisti, o senhor escreveu uma carta dirigida ao vice-presidente da Bolívia Álvaro García Linera, solicitando que ele intercedesse pelo italiano. Qual o conteúdo dessa carta, e o que o motivou a escrevê-la?
Eu já tinha ideia do que estava acontecendo com Cesare e sabia que, da forma mais correta possível, atendendo a todas as normas legais, ele havia pedido refúgio à Bolívia. Inclusive, hoje uma revista publicou a cópia dos formulários que ele preencheu. E essa solicitação não havia sido respondida.
Eu então resolvi escrever ao Álvaro García Linera. Eu não o conheço pessoalmente, mas nós somos da mesma organização. Eu era do MAS [Movimento ao Socialismo] da Argentina, e ele do MAS da Bolívia. Então, eu quis evocar seu espírito militante para que ele, embora tivesse que consultar o presidente Evo Morales, fizesse um esforço e intercedesse.
Já haviam passado oito dias do pedido de Cesare, e ninguém podia negar que ele era um perseguido. A minha carta foi interceptada pelo serviço de inteligência, não sei se da Itália ou do Brasil. O fato é que eu recebi um telefonema de uma pessoa que não quero identificar, dizendo que havia chegado às mãos dele uma carta interceptada. Nessa conversa, soube que o governo boliviano estava sendo mantido fora do assunto.
Isso é algo gravíssimo, porque significa não só uma agressão aos Direitos Humanos, à Convenção de Genebra de 1951, o protocolo da Convenção de 1969: é também uma ofensa ao direito internacional. Não se pode interromper um processo de refúgio. Caso se rejeite, é preciso dar 30 dias para que a pessoa possa buscar outro destino. Então, eu resolvi dar publicidade a essa interceptação em todos os meios que estivessem ao meu alcance.
Não sei se ele [Linera] chegou a receber essa carta. Mas acho que a posição dele estava bloqueada. Agora, eu acabo de ler um artigo do irmão dele, Raúl [García Linera], em que critica fortemente o irmão e o presidente Evo Morales, dizendo que foi uma traição à esquerda latino-americana, e que coloca todos nós em uma situação de desconfiança, de insegurança.
O que aguarda Cesare Battisti na prisão italiana?
Bom, o processo judicial acabou, isso não vai ser revisto. Ele foi condenado inicialmente a quatro prisões perpétuas. Eu imagino que os juízes se deram conta que era uma condenação muito ridícula. Então, passaram a condená-lo somente a duas prisões perpétuas. Acho que ele corre grave risco de tortura inicialmente.
Se os grupos de Direitos Humanos da Europa não intervirem, ele pode ser torturado e podem fazer qualquer tipo de coisas com ele.
Edição: Mauro Ramos