Gramsci define o ciclo de tragédias que nascia com a primeira grande guerra como o “tempo dos monstros”: o velho mundo agonizava, mas o novo ainda lutava para nascer. Esse transe dolorido parece estar de volta, mas quem se mostra ferido de morte é o novo, com o retorno imperial do passado, numa tentativa de reter o amanhã. O velho não saiu do Oriente Médio; renasce na Europa e se instala nos EUA, de onde promete irradiar-se, pela força do imperialismo.
Anuncia-se uma nova ‘Santa Aliança’ com a pretensão de reordenar o mundo, sob um novo projeto conservador, substituídos os impérios russo e austríaco de então e o reino da Prússia, pelos EUA de Donald Trump, seus aliados europeus e Israel e a Arábia Saudita.
A esse grupo, o Brasil de Bolsonaro pede ingresso. Dele, adesista, já se oferece como seu ‘capitão do mato’ no Atlântico Sul, cuidando, como preposto, da América do Sul e da África Ocidental.
O novo ‘tempo dos monstros’ lembra a articulação reacionária dos anos 30 do século passado, quando foram gestados o nazi-fascismo e o stalinismo, o Eixo e a II Guerra Mundial que se desdobraria, até quase nossos dias. A Guerra Fria, renascente, pretende exprimir a falsa oposição Ocidente versus Oriente transformada pelo trumpismo na díade EUA versus China e Rússia.
Guardadas as diferenças e consideradas as semelhanças (e como não havê-las?), vivemos, hoje, outros tempos, embora não necessariamente novos, porque a História não se repete. Ao invés de farsa, nos aproximamos mais e mais de uma tragédia: a volta a caminhos já percorridos, dos quais não guardamos boas lembranças. Trata-se de recuo, que, em termos mundiais, revive o período entre as duas guerras mundiais, e, olhando para nossa realidade, representa um retorno ao regime militar. A distinção entre o mandarinato corporativo de 1964-1985 e o governo recém empossado não anula o caráter ideológico comum, nem minimiza o retorno da preeminência da caserna.
Nossos acadêmicos, de volta a Bizâncio, discutem se o novo regime – o governo Bolsonaro será um novo regime – é um projeto fascista, neofascista ou pós-fascista, pois não se confunde com as experiências clássicas da Itália, da Alemanha e do Japão dos anos 30/40 do século passado, as quais, distintas entre si, relembre-se, também se distinguiram de suas congêneres portuguesa e espanhola. Em comum, como o Estado Novo varguista e o regime militar instalado em 1964, cultivaram a repressão e o anticomunismo que, aqui e agora, o bolsonarismo tenta recuperar, nada obstante a ausência de matéria-prima. Porque todo regime autoritário – seja ele os EUA de Donald Trump, o hitlerismo, a ditadura brasileira ou o grotesco, embora perverso, regime dos militares argentinos – necessita de um inimigo. Quando este não existe, cria-se.
Diz-se que o bolsonarismo distingue-se de suas raízes históricas por não possuir um corpo para-militar. Ora ele dispõe em sua retaguarda sa maioria das forças armadas e de de todas as corpirações civis e militares (polícias, ministério público etc.) encarregadas da repressão
Esquece-se a média dos analistas — pensando o processo social a partir de leis e padrões e modelos — que a História não se desenvolve em monótona rota linear; ela conhece círculos e ciclos, move-se como as marés e nenhuma onda do mar é a exata reproducão de sua antecessora, embora dela haja nascido.
Os atuais governos da França, da Hungria, da Polônia e da Turquia, para citar apenas esses, como o atual governo dos EUA, embora guardem profundas distinções entre em si, são todos de direita e mesmo de extrema-direita; recebem apoio de saudosistas do nazismo e constituem um conjunto político-estratégico em ação no plano internacional. Suas diferenças não anulam orientações doutrinárias expressas na intolerância política, no nacionalismo, na xenofobia, na aversão ao multilateralismo, no anticientificismo, na negação do Estado laico e na instrumentalização do medo e da insegurança como ferramentas de mando.
O regime imposto em 1964 e o bolsonarismo estão separados por 55 anos de processo social e história. Afora o mais, um resultou de golpe de Estado perpetrado por uma aliança civil-militar, e outro de eleições até aqui consideradas formalmente legítimas. As diferenças óbvias e consequentes, todavia, não nos impedem de agrupá-los no largo campo da direita, o gênero do qual são espécies a extrema-direita, o fascismo, o nazismo, o salazarismo, o franquismo e uma lista sem fim que não termina nem no Chile de Pinochet. Essa classificação, aliás, é reivindicada pelos seus áulicos, de ontem e de hoje.
O fato objetivo é que o discurso do bolsonarismo, desde a medíocre vida parlamentar do capitão, um barbarismo repetido na campanha eleitoral e nos discursos de posse, acena com a intolerância, anúncio da divisão do país em dois segmentos antípodas e incompatíveis, uma intolerância (nela embutida a política do medo) que é artificial no embate político e que jamais se supôs compatível com a festejada índole cordial e pacífica, relaxada, de nosso povo. Essa intolerância, sabidamente essencial na disputa pelo poder, revela-se indispensável para sua conservação.
Daí o palanque no governo.
O capitão (saído da caserna pelas portas dos fundos) não deseja ser ‘o presidente de todos os brasileiros’, como se anunciavam os governantes, mesmo os generais da ditadura militar, mas de uma parte deles, e promete governar contra os outros, mantendo em oposição os dois gomos da laranja ideológica.
Ao estabelecer a divisão do país entre esquerda e direita, aquela como o inimigo a ser abatido, Bolsonaro sugere serem de esquerda todos os que a ele se opõem, e esses, se não renunciam aos seus projetos, ou buscam o exílio, devem ter a cadeia como expectativa de presente imediato.
Na construção do inimigo, cuja ameaça galvaniza apoios, o capitão elege o que identifica como a esquerda brasileira, nesse conceito reunindo tudo o que detesta: a esquerda propriamente dita, os socialistas, os comunistas, os trabalhistas de um modo geral, os ambientalistas, os liberais e os democratas de todo gênero. E, principalmente, o lulismo, cuja destruição é o mote de resistência da direita brasileira. A esquerda real – que não é a oposição toda – assume, assim, por imperativo das necessidades táticas da estratégia da extrema-direita, um protagonismo superior às suas forças.
Mas qual é seu próprio projeto, considerados seus valores e as circunstâncias de hoje? Evidentemente que a Frente Ampla (e somente será ampla se estiver aberta à participação de todos aqueles que lutam hoje e pretendem continuar lutando contra o regime em instalação) é a primeira alternativa tática. Trata-se, como ponto de partida, de resistir ao inimigo para derrota-lo na primeira oportunidade, e ao final, tomar as rédeas do governo para realizar seu projeto de sociedade. Mas qual é esse projeto? Hoje não está claro, nem do ponto de vista tático, nem do ponto de vista estratégico.
E está ainda menos claro quem exercerá sua liderança.
Independentemente de qualquer classificação acadêmica, arquiteta-se aos nossos olhos um projeto político hegemônico com vocação duradoura, no qual as forças armadas brasileiras, como coletivo, desempenham o duplo papel de sujeito e retaguarda. Esse projeto – que interessa à geopolítica ditada pela grande potência– aspira a algo para além do partido único, desprezados para qualquer fim considerações republicanas ou cuidados com as instituições. Os meios serão ditados pelas exigências do poder.
Seu catecismo compreende nosso isolamento internacional, uma politica anti-imigratória, o desrespeito aos direitos identitários conquistados ao longo de dezenas de anos de lutas, a repressão aos movimentos populares e sindicais de uma forma geral, e o MST e as centrais sindicais de esquerda de modo particular, ou seja, mais restrições aos direitos dos trabalhadores, mais recessão, mais insegurança e desemprego. Mais medo, enfim.
Este é o caráter do nosso “tempo de monstros”.
*Roberto Amaral é articulista em Carta Capital.
Edição: Carta Capital