Vivemos a Era dos Homens Fortes – o tempo do autoritarismo
Por Vijay Prashad*
Union of Soviet Surrealism Republics, Viktor Mogilat, 2017.
Já faz quase um ano desde que decolamos. Nossos escritórios em todo o mundo estão funcionando. Você recebeu 44 cartas semanais, 11 dossiês, um caderno e um documento de trabalho. Mais publicações estão a caminho entramos no nosso calendário do segundo ano.
Ao longo dessas cartas semanais, apresentamos algumas linhas gerais de nossas preocupações e esperanças. Tentamos confrontar a realidade que vivemos, a Era dos Homens Fortes – o tempo do autoritarismo. Os sorrisos largos dos neoliberais desapareceram. Eles tiveram sua oportunidade de oprimir a sociedade e produzir prosperidade para poucos. Quando espremeram a sociedade, a riqueza foi para poucos e deixou muitos desamparados. Foi nessa condição de desigualdade insuportável que os Homens Fortes apareceram. Prometeram empregos e o fim da corrupção, mas o que realmente entregaram foi toxicidade social. Era mais fácil culpar as minorias por diversos problemas sociais do que tentar resolvê-los. Os Homens Fortes deram continuidade à agenda neoliberal, mas dessa vez sem um sorriso em seus rostos. Eles prometeram violência e entregaram violência. Estes são tempos sombrios.
Unemployment, Käthe Kollwitz, 1909.
Em 1935, o dramaturgo marxista alemão Bertolt Brecht escreveu uma breve nota sobre o capitalismo e o fascismo: “Aqueles que são contra o fascismo sem serem contra o capitalismo estão dispostos a comer o bezerro, mas não querem ver o sangue. Eles se dão facilmente por satisfeitos se o açougueiro lava as mãos antes de pesar a carne. Não são contra as relações de propriedade que geram a barbárie; são apenas contra a própria barbárie”.
As “relações de propriedade” falam do capitalismo – no qual uma pequena minoria da população mundial detém a vasta massa de riqueza social (terra, trabalho e capital). Essa riqueza é usada homeopaticamente para contratar seres humanos e explorar a natureza não por qualquer outra razão que não fazer dinheiro a partir do dinheiro, ou seja, com fins lucrativos. A preocupação com os seres humanos e a natureza não impulsiona o investimento desse capital, ganancioso por sua natureza.
O capital se destaca da vida humana, ansioso por acumular mais e mais capital a todo custo. O que mobiliza os poucos – os capitalistas – é aumentar seus lucros buscando maior lucratividade.
Strike, Nada Prlja, 2010.
De forma cíclica, os capitalistas acham que não há investimentos fáceis e seguros que garantam lucros. Essa crise de lucratividade, como mostramos em nosso primeiro documento de trabalho, leva a dois tipos de greves:
(1) Primeiro, uma greve fiscal, onde os capitalistas usam seu poder político para reduzir a carga tributária sobre si mesmos e aumentar sua riqueza.
(2) Em segundo lugar, uma greve de investimentos, na qual deixam de investir no setor produtivo, e estacionam sua riqueza de forma especulativa, para preservá-la.
Essas greves dos capitalistas tiram a riqueza do uso social e secam as perspectivas econômicas de um grande número de pessoas. Com o aumento da automação e da produtividade, os capitalistas começam a substituir trabalhadores por máquinas ou então os deslocam de forma a ter maior eficiência do processo de produção. Nesse caso, os investimentos são feitos – em máquinas e em melhorias no local de trabalho – mas estes têm o mesmo impacto na sociedade que a greve de investimento, ou seja, há menos pessoas empregadas e mais ficam permanentemente desempregadas.
Altas rendas, junto com desigualdade social, enfraqueceram as aspirações de uma vida melhor para grandes setores da população, o que criou uma séria crise de legitimidade para o sistema. As pessoas que trabalham duro, mas não veem seu trabalho recompensado, começam a duvidar do sistema, mesmo que não consigam enxergar uma saída das “relações de propriedade” que as empobrecem. Os principais políticos que defendem tais relações e que apelam aos desesperados para que se tornem empreendedores não são mais considerados dignos de confiança.
Esperamos dar exemplos de um possível futuro construído para atender às aspirações das pessoas, compartilhar vislumbres desse futuro que já existe hoje. Exemplos disso podem ser encontrados em nossos dossiês sobre cooperativas habitacionais em Solapur (Índia), construídos por iniciativa de mulheres beedi trabalhadoras e na reconstrução de Kerala (Índia) após o dilúvio. Fique atento ao nosso trabalho sobre os trabalhadores excluídos da CTEP (Argentina) e sobre as cooperativas do MST (Brasil).
Os Homens Fortes entram onde tal futuro não parece possível. Eles menosprezam os políticos convencionais por seus projetos fracassados, mas também não oferecem uma solução coerente para as crises crescentes. Em vez disso, culpam os vulneráveis pelas pequenas aspirações da vasta maioria. Entre esses vulneráveis estão as minorias sociais, migrantes, refugiados e qualquer pessoa que não tenha poder social. As presas dos homens fortes são mostradas aos fracos, que ganham a ira daqueles que têm altas aspirações, mas não conseguem satisfazê-las. Os Homens Fortes aproveitam as frustrações das pessoas sem oferecer uma saída razoável para uma situação de alta desigualdade e turbulência econômica.
Capitalism Kills Love, Claire Fontaine, 2008.
Uma teoria para explicar o problema é a do subconsumo. O teor geral desta teoria é que os bens que estão sendo produzidos não podem ser comprados pela massa de pessoas, uma vez que elas não têm renda suficiente. Esse é um problema de demanda. Se existe uma maneira de aumentar o dinheiro dado às massas, elas podem aumentar o consumo e salvar o capitalismo de sua crise.
Uma abordagem em relação a esse problema de subconsumo é aumentar a oferta de crédito privado para pessoas que serão incentivadas – por meio da publicidade – a viver além de sua renda. Eles vão se endividar, mas seu consumo – espera-se – estimulará a economia a sair da crise. Eventualmente, essas pessoas não serão capazes de pagar suas dívidas. Sua dívida será inflada e criará sérios problemas sociais. Os governos serão obrigados a pedir emprestado para tirar o fardo das costas dos bancos – quando os devedores forem à falência. Esses empréstimos fazem com que os governos neoliberais criem mais programas de austeridade contra gastos sociais. A entrega de crédito privado para resolver o problema do subconsumo geralmente termina com austeridade social.
Uma segunda abordagem em relação a esse problema de subconsumo é que o governo conceda um incentivo econômico aos consumidores por meio de cortes de impostos ou por meio de um esquema de transferência direta de renda. De qualquer maneira, o governo entrega seu dinheiro ao povo e incentiva-o a comprar bens e estimula a economia. Mais uma vez, é o governo que se endivida para salvar o capitalismo. Mais uma vez, a dívida vai aumentar, e o governo terá que entrar em um programa de austeridade para apaziguar os credores e o FMI (quando este chega, há poucos bons resultados – como Celina Della Croce, coordenadora do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social deixa claro neste artigo recente). Mais uma vez a austeridade social será a resultante, e mais uma vez irá tolher o poder de compra das pessoas.
O ciclo continuará.
Tanto indivíduos quanto famílias ou o Estado se endividam para aumentar o consumo agregado e salvar o capitalismo de si mesmo. Por esse método, ao capital não é solicitado sacrificar nada. É permitido a ele perseguir a estratégia de rentabilidade.
O capital procura aumentar sua lucratividade por diversos meios, tais como:
1) Substituição de pessoas por máquinas ou tornar seus empregados mais eficientes. Isso permite que empresas contratem menos, aproveitem ganhos de automação e produtividade e alavanquem sua concorrência efetiva para eliminar concorrentes.
2) Transferência de fábricas para áreas onde os salários são mais baixos e onde regulamentações do local de trabalho e do meio ambiente estão suprimidas.
3) Diminuição da carga tributária, fazendo greve fiscal, transferindo seu dinheiro para paraísos fiscais.
4) Transferência de capital das atividades produtivas para atividades financeiras, comerciais e rentistas.
5) Compra de ativos públicos a baixo custo, monetarizando-os para obter lucro.
Essas estratégias permitem que os capitalistas aumentem sua riqueza, ao mesmo tempo que empobrecem o povo e a sociedade. Ao povo é solicitado que seja patriota. Ao capital só é solicitado que seja rentável.
Para a esquerda, essa situação representa sérios desafios. O primeiro conjunto de desafios é encontrar uma maneira de organizar as pessoas que acham que sua sociedade está destruída e possuem expectativas confusas. O segundo conjunto de desafios inclui encontrar uma saída política desse sistema e suas limitações.
Quais são os desafios diante de nós para organizar as pessoas contra esse sistema intratável?
Sapeurs de Bacongo series, Baudouin Mounda, 2008.
Aspirações. Ao longo das últimas cinco décadas, a mídia capitalista e a indústria publicitária criaram um conjunto de aspirações que romperam a cultura da classe trabalhadora e do campesinato, bem como os mundos culturais tradicionais do passado. Os jovens agora esperam mais da vida, o que é bom, mas essas expectativas são menos sociais e mais individuais, com as esperanças individuais frequentemente ligadas a mercadorias de um tipo ou outro. Ser livre é comprar. Comprar é estar vivo. Esse é o lema do sistema capitalista. Mas aqueles que não podem comprar e que se endividam por causa de suas aspirações também estão constantemente decepcionados. É esse desapontamento que os Homens Fortes canalizam em direção ao ódio. Os movimentos de esquerda podem canalizar essa decepção e transformá-la esperança produtiva?
Unfinished Life, Benon Lutaaya, 2012.
Atomização. Cortes estatais de serviços sociais, maior privatização da vida social e o aumento astronômico da interação com o mundo digital agravaram a atomização da interação humana. Antes as pessoas trocavam ideias e bens, ajudavam-se mutuamente e se inspiravam; agora, há cada vez menos locais para interações face-a-face. A fragmentação da sociedade e o esgotamento das pessoas que buscam por sua sobrevivência tornaram mais difícil para a esquerda unir as pessoas para gerar uma mudança social. A televisão e as mídias sociais dominam o mundo da comunicação. Esses são meios controlados por empresas capitalistas monopolistas. A esquerda sempre contou com instituições da sociedade para serem transmissoras. À medida que essas ligações sociais se fragmentam, a esquerda se dissolve. Os movimentos de esquerda podem ajudar a reconstruir essas instituições e processos, essa sociedade que é nossa base?
Tornado, Abdul Rahman Katatani, 2018.
Outsiders. Os Homens Fortes apontam seus dedos para os “de fora” – as minorias sociais, os migrantes, os refugiados e qualquer pessoa que seja socialmente desprovida de poder. É contra essas pessoas que a extrema direita é capaz de construir sua força. Não pode haver ressurgimento da esquerda sem uma defesa firme e completa desses outsiders, uma rejeição total das ideias fascistas de propagação de ódio e biologicistas, que saturam a sociedade. É mais difícil construir uma política de amor do que uma de ódio. Os movimentos de esquerda podem desenvolver uma política de amor que atraia as massas?
Baltimore, Devin Allen, 2015.
Confiança. A política do povo está enraizada na confiança. Se as pessoas não se sentirem confiantes em suas ações para reformar ou mudar o sistema, elas não serão ativas. Ondas de insatisfação muitas vezes levam a um aumento da confiança, mas mesmo aqui a ênfase não é a última pessoa que se soma a um protesto, mas as primeiras que fizeram a rede para construir o protesto. A decadência social leva a uma falta de confiança para fazer mudanças políticas, particularmente quando a sociedade aspiracional sugere que a única mudança necessária é que todos se tornem empreendedores. Pode a esquerda produzir a sensibilidade de que um futuro é possível e gerar confiança entre as pessoas para lutar para construir esse futuro?
Indonesia elections, Howard Sochurek, 1955.
Democracia sem democracia. Em sociedades onde não há democracia, esse problema não é imediato. Ali, a tarefa é ganhar a democracia mais plena. Nas sociedades onde a democracia é a forma principal, ou onde há pelo menos uma ilusão de democracia, a oligarquia e o imperialismo usaram muitos métodos para miná-la, para dominar a sociedade sem suspendê-la. Os métodos utilizados são sofisticados, incluindo a deslegitimação das instituições do Estado, depreciação das eleições, uso de dinheiro para corromper o processo eleitoral, uso de mídia social e propaganda para destruir candidatos da oposição e utilização das instituições menos democráticas – tais como um judiciário não eleito – para corroer o poder das autoridades eleitas. Pode a esquerda defender a ideia de democracia a partir desse desgaste sem permitir que ela signifique apenas eleições e o sistema eleitoral?
Nosso Instituto Tricontinental de Pesquisa Social está realizando investigações sobre essas cinco linhas.
Uma vez que as pessoas estejam organizadas para pressionar por um novo sistema mundial, qual é a estrutura de políticas que precisa ser adotada? É aqui que os intelectuais devem colocar seu coração e alma em ação. Precisamos pensar muito sobre as muitas maneiras criativas de usar nossa riqueza social para resolver os problemas imediatos da humanidade – fome, doenças, catástrofes climáticas. Precisamos encontrar maneiras de erradicar a base das guerras. Precisamos usar nossa criatividade para reconstruir o setor produtivo em torno de formas cooperativas. Precisamos usar a riqueza social para nos enriquecer culturalmente, criando mais lugares físicos para interagirmos, para produzir cultura e arte. Precisamos usar nossa riqueza social para produzir sociedades que não obriguem as pessoas a trabalharem para sobreviver, mas que permitam que elas trabalhem de forma subordinada à engenhosidade e à paixão humanas.
Acid Rain, Bright Ugochukwu Eke, 2009.
É cruel pensar que essas esperanças são ingênuas. Diz-se muito que é mais fácil imaginar o fim da Terra do que imaginar o fim do capitalismo, imaginar a calota polar nos inundando até a extinção do que imaginar um mundo onde a nossa capacidade produtiva nos enriqueça.
Toda a nossa equipe se junta a mim para lhe desejar um feliz ano novo.
Cordialmente, Vijay.
P.S.: Celebramos o nascimento de Manuela Sáenz y Aizpuru (1795-1856), revolucionária nascida em Quito (Equador) e que lutou pela independência na América Latina ao lado de Simón Bolívar. Depois de ter salvado sua vida, ela ficou conhecida como a libertadora do libertador.
*Vijay Prashad é historiador e jornalista indiano. Diretor Geral do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.
Edição: Luiza Mançano