Vítima de abuso sexual dentro da comunidade mórmon na infância, a ativista Sabrina Bittencourt é responsável por articular a rede de denúncias que fez com que o império de João de Deus, em Abadiânia (GO), começasse a ruir.
Duas semanas após a divulgação das primeiras denúncias de abuso sexual contra o médium, o Ministério Público do Estado de Goiás (MP-GO), responsável por investigar o caso, recebeu relatos de 255 mulheres que detalham violações estarrecedoras. Segundo o órgão, as vítimas possuem entre 9 e 67 anos e 44% dos casos prescreveram.
João de Deus foi indiciado por violação sexual mediante fraude e está preso no Núcleo de Custódia em Aparecida de Goiânia desde 16 de dezembro. As acusações - negadas pela defesa do médium - foram publicadas com exclusividade pelo programa Conversa com Bial e pelo jornal O Globo. Além da investigação relacionada aos estupros, a Polícia Civil de Goiás instaurou um novo procedimento para apurar a origem e regularidade de armas apreendidas em imóveis de João de Deus, além de R$ 1,6 milhão e dezenas de pedras preciosas.
Bittencourt atua há 20 anos na defesa de grupos vulneráveis de forma voluntária e desde as denúncias contra o “guru espiritual” Prem Baba, em agosto deste ano, colabora com a investigação de casos e no acolhimento das vítimas.
“Comecei a receber as denúncias no Facebook porque fiz um post no meu feed perguntando quem tinha relatos sobre abusos do Prem Baba e de outros líderes religiosos, porque estava disponível para escutar. Em um mês, recebi 103 relatos de mulheres do Brasil inteiro e de outros países falando de 13 líderes espirituais”, conta Sabrina, co-fundadora do movimento Combate ao Abuso no Meio Espiritual (Coame), junto com outras mulheres vítimas de abuso.
“Recebemos denúncias de gente de todo tipo de religião. A cada mês, mais ou menos, vamos revelar entre 1 e 2 deles, justamente pela quantidade de pessoas e também por tudo que envolve”, adianta a ativista, que atualmente acompanha 82 vítimas do João de Deus de forma próxima. “Eu espero que essa mobilização seja só o início de algo muito maior.”
Preparando material para expor outros líderes religiosos, Bittencourt é alvo de ameaças de morte devido à sua atuação internacional e precisa mudar de endereço constantemente. Em entrevista ao Brasil de Fato, a ativista fala sobre os bastidores das denúncias que levaram à prisão de João de Deus.
Confira na íntegra.
Brasil de Fato - Desde quando acompanha esses casos de abuso no meio espiritual e como as denúncias chegaram até você?
Sabrina Bittencourt - Comecei a receber as denúncias no Facebook porque fiz um post no meu feed perguntando quem tinha relatos sobre abusos do Prem Baba e de outros líderes religiosos, porque estava disponível para escutar. Em um mês, recebi 103 relatos de mulheres do Brasil inteiro e de outros países falando de 13 líderes espirituais.
Esse movimento eu fiz porque li, pela internet, a nota da Mônica Bergamo falando das denúncias sobre o Prem Baba no final de agosto. Coloquei que meu único interesse era saber como as vítimas deles estavam sendo tratadas nas comunidades religiosas, porque já passei por isso, por esse rechaço público em comunidade religiosa, entre os mórmons, quando eu sofri há 20 anos, abusos e estupro.
Qual sua atuação com essas vítimas, o que te motivou a construir esse ativismo?
Quando eu percebi que tinham muitas mulheres em situação de vulnerabilidade emocional grave, comecei a solicitar apoio de terapeutas voluntários da minha rede para que elas pudessem ser atendidas, porque muitas delas também estavam em estado de vulnerabilidade financeira justamente por estar com depressão, síndrome do pânico e tudo mais. Eu comecei isso justamente porque eu sei o que é essa dor, porque eu já passei por isso. Então, eu me vi na obrigação moral de fazer algo. Logicamente que eu não sabia a proporção que isso iria tomar mas, no começo, a minha preocupação maior era que elas estivessem seguras psicologicamente, pelo menos.00:48
Especificamente no caso João de Deus, como estão as vítimas?
Eu atendo até agora 82 vítimas do João de Deus, fora as outras. No total são mais de 200 até o momento. Claro que cada uma está em uma situação diferente. Umas foram abusadas na década de 90, outras estavam com câncer na época do abuso, outras perderam bebê, outras estavam grávidas quando quando ele abusou, outras são menores de idade... Então, cada situação é única. Eu não posso generalizar como elas se sentem mas tem alguns pontos em comum, como por exemplo, muitos pesadelos porque elas têm escutado o nome dele, visto o nome dele constantemente na mídia e nas redes sociais.
Tem um misto de querer não ver, mas as pessoas ficam marcando no Facebook, ficam falando sobre o assunto que são consequências naturais. Tentei preparar algumas delas que eu tinha contato antes do boom, quando saiu no Bial, de que isso poderia acontecer e quais seriam as medidas de precaução e emergência. Sobre a Silvia, que eu atendi durante três meses, faz uma semana e um dia que ela cometeu suicídio. Me chamou sete vezes no dia anterior ao de cometer o suicídio e eu estava atendendo a Dalva, filha do João de Deus e o advogado dela, de forma emergencial, desmentindo um vídeo que foi feito sob coação no ano passado. Eu passei o dia inteiro dando entrevistas, 9 entrevistas para emissoras, para todo mundo desmentindo esse vídeo, enquanto ela era colocada em um lugar seguro.
Me senti muito culpada por não ter atendido os telefonemas da Silvia. Foi justamente no dia que pela manhã, na quarta-feira, 12 de dezembro, que ele apareceu e que foi trabalhar normalmente lá na Casa de Dom Inácio de Loyola. Isso foi a gota d'água para ela. Eu imagino que ela acreditava que não ia dar em nada, que não ia ser feita justiça. Eu entrei em choque. Fui parar no hospital por conta disso no dia seguinte, faz uma semana.
Há um modus operandi, um discurso em comum, utilizado por eles?
Todos eles têm os seus próprios métodos em função de como eles se atraem pelas vítimas. Mas eles utilizam sempre o mesmo discurso da fé e utilizam da vulnerabilidade emocional delas. Sem dúvida. Há abuso por fraude em todos os casos. O ponto comum deles é que se acham acima do bem e do mal. Todos eles acham que são enviados de Deus, do Deus de cada um, que são seres iluminados e que estão acima dos outros homens. Que eles podem fazer o que quiserem e que quando eles agem dessa forma, muitas vezes estão descendo do lugar imaginário deles de iluminação para uma parte terrena, onde as mulheres têm o privilégio de ter contato sexual com eles.
Eles realmente acreditam que são seres que estão acima de todo mundo. Mas cada um tem seu próprio método, não tem um padrão. A única coisa é que eles utilizam a linguagem no sistema de crenças que cada um acredita. O Prem Baba vai utilizar termos relacionados ao hinduísmo, João de Deus faz uma mistura, uma mescla de conceitos e outros. Eles utilizam daquilo que eles sabem que as vítimas conhecem de narrativas. Alinhar o chacra, tirar um pouco da energia da Kundalini [ativação da energia corpórea concentrada na espinha dorsal]. Enfim, diz que conheceu de outras vidas e que foi a mulher, foi esposa em outras vidas. Agora estaria reconhecendo nessa vida, que foi esposa e ela vai ser a esposa dele nessa vida também.
Como se articulam essas redes de denúncia? Qual a importância delas nesse momento?
É importantíssima a criação desses grupos de apoio porque o Estado não faz o seu papel como deveria. Como vimos, há muita gente conivente com o João de Deus, conivente com o Prem Baba, conivente com todos os líderes espirituais. Essas pessoas têm poder e não servem a sociedade como deveriam servir. A nossa estratégia é justamente expor nos meios de comunicação essas histórias, primeiro para que as pessoas que são honestas dentro do funcionalismo público, ou seja, honestas dentro da promotoria do Ministério Público, pessoas honestas nas delegacias. Só que a gente nunca sabe quem é honesto e quem não é.
Temos que ter todo cuidado possível para não expor ainda mais as vítimas. Tem um monte de relatos de mulheres que tentaram fazer as denúncias em delegacias e no Ministério Público e que não foram levadas adiante desde a década de 90. Isso quer dizer que tinha muita gente com o rabo preso. Tomamos a frente, as ativistas que trabalham com isso. Eu, o grupo da Coame que eu ajudei a fundar, que é um grupo criado por mulheres que sofreram abusos e que não podem se identificar. Vamos continuar mantendo o anonimato mesmo. Estou como porta-voz porque já recebo tanta ameaça de morte na minha vida que já estou acostumada. Vivo como nômade, com o mundo em uma mochila. Vou mostrando a cara mesmo porque isso é necessário.
O grupo Vítimas Unidas que é da Vana Lopes e da Maria do Carmo dos Santos que tem mais de 130 mil membros e há muitos anos já articulam todos esses pedidos e pressão social na mídia. Todos nós estamos juntos nisso. Estamos bem unidos, para ajudar a solucionar. Cada um com as suas redes, cada um com seus conhecidos em cada área, mas nos conversamos praticamente diariamente para ajudar na criação de soluções.
No meu caso, ajudo a mobilizar as terapeutas voluntárias, advogadas voluntárias, faço todo um trabalho de articulação internacional com organizações de direitos humanos para proteção de outras ativistas e outros ativistas que estão aí. Acabamos trabalhando em conjunto também com a organização Mães da Sé, de desaparecimento de pessoas e tráfico de pessoas. Com a Artemis, que é uma ONG que trabalha com prevenção e resolução de violência doméstica. Está tudo atrelado, uma coisa a outra. São elos e estamos bem unidos.
De que forma as mulheres podem se prevenir, reagir e se organizar para enfrentar esse tipo de violência?
A forma de se prevenir muitas vezes é não ficando sozinha com nenhum líder espiritual, em nenhum recinto. E também, pressionando as mulheres da própria comunidade, das lideranças das religiões, seitas e comunidades espirituais, pressionando os líderes para que sempre tenha uma outra pessoa junto. Em qualquer situação, seja para confidência. É preciso ter uma pessoa junto com elas para que elas não fiquem sozinhas e nem deixem seus filhos sozinhos com nenhum líder espiritual.
Como analisa a atuação da defesa? O advogado Alberto Toron utilizou o argumento, por exemplo, que a holandesa Zahira Lieneke Mous, que participou do Conversa com Bial, era prostituta, claramente com o objetivo de deslegitimar a acusação.
A defesa do João de Deus está se comportando de uma forma vergonhosa. Não só eu, mas todos os ativistas que trabalham nessas causas têm falado sobre isso publicamente porque é inadmissível que um advogado ache que pode investigar, inventar coisas a respeito das vítimas e dos ativistas. Eu não tenho dúvida de que com certeza tem o dedo de gente aí que criou as fake news que eu tinha me suicidado e que encomendou isso. Eu recebo mensagens constantemente dizendo que era só o começo, que muitas fake news virão por aí. Tenho certeza que a Zahira também deve ter sido ameaçada.
Quando eles começam a fazer isso, eles acham que ainda estamos nos anos 90 e que as pessoas vão acreditar. As mulheres têm se levantado contra isso. É inadmissível que isso seja aceito e que isso tenha eco dentro da imprensa, que a imprensa ainda veicule esse tipo de coisa. O que podemos esperar de advogado que só defende bandido, que só defende abusador? O que a gente pode esperar de um homem assim?
Você tem sido alvo de ameaças e de fake news. Porque acredita que isso está acontecendo e como tem lidado com essas ofensivas?
Há dois meses e meio venho recebendo ameaças de morte, constantemente, diariamente. A única coisa que tenho a fazer é me proteger e proteger minha família. Não posso dar muitos detalhes sobre isso porque está sob investigação na Europa, mas não me surpreendi em nada, porque não estou mexendo só com João de Deus. Estou mexendo com João de Deus e todos os seus aliados, cúmplices. Tem outros crimes aí. Ele sabe de muita coisa e muita gente protegeu ele também porque é beneficiário de tráfico de pedras preciosas de garimpo ilegal e um monte de outras coisas.
As denúncias contra Prem Baba e do João de Deus tiveram repercussão nacional. Existem muitos outros além desses? Os abusos que recebe se restringem as religiões espirituais ou outras religiões também?
Só expusemos esses dois casos por enquanto. Mas, o Prem Baba é de linha hinduísta, o João de Deus espiritualista, ele nem é espírita. Recebemos denúncias de gente de todo tipo de religião. A cada tempo, a cada mês mais ou menos, vamos revelar entre 1 e 2 deles, justamente pela quantidade de pessoas e também por tudo que envolve. Cada vez que falamos sobre isso há variáveis que tem que ser levadas em conta, como o cuidado das vítimas, o apoio com terapeutas, prevenção de perseguição e assassinato, queima de arquivo. Avisar a imprensa, preparar o Ministério Público para receber uma quantidade imensa de pessoas. Tem para todo mundo. Não tem nenhuma religião, nenhuma comunidade espiritual que está isenta disso. Tem para todo lado e vamos aos poucos mostrando e encorajando as vítimas a se organizarem também.
O que você espera que essa mobilização seja capaz de gerar?
Eu espero que essa mobilização seja só o início de algo muito maior. Eu espero muitas coisas. Espero que as vítimas sejam respeitadas, que as mulheres sejam ouvidas, que as pessoas acreditem nas crianças quando elas falem que estão sofrendo pedofilia. Eu espero que isso previna novos casos. Espero que as pessoas sejam mais atentas aos seus filhos e suas filhas, espero que vidas sejam protegidas, espero que a sociedade como um todo não dê tanto poder somente para algumas pessoas, e que elas tenham poder somente sobre suas próprias vidas.
Que as pessoas sejam críticas, analíticas e que [saibam] que o fato de ter fé não exclui a possibilidade de alguém ser inteligente no sentido de não entregar toda a sua força e todo seu poder para outro ser humano. Que as pessoas possam se ver de igual para igual porque para mim não existe ser humano que está acima de outro ser humano. Todos nós estamos aqui para aprender alguma coisa nessa vida. Todos somos falhos, só que alguns ultrapassam isso, são criminosos. Os criminosos precisam entender que já basta. Isso já não é mais admissível nesse século e a gente vai terminar com isso. Entre todos, vamos conseguir terminar com isso.
Edição: Camila Maciel