A determinação da soltura de todos os presos que estão detidos por condenações em segunda instância, feita pelo ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF) e derrubada nesta quarta-feira (19), não se aplicaria apenas o caso do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), 169 mil pessoas poderiam ser beneficiadas pela decisão. O órgão estima que há 706 mil presos no Brasil, dos quais os 169 mil (23,9%) estão em execução provisória, ou seja, foram condenados pela segunda instância, sem a decisão final dos tribunais superiores.
Marco Aurélio Mello concedeu liminar favorável à Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) n. 54, protocolada pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB). A ação pedia que o inciso 57 do artigo 5º da Constituição -- “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” -- tivesse seu sentido restabelecido, impedindo prisões após condenação em segunda instância.
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O entendimento foi revisado pelo Supremo em 2016. Na avaliação de Bruno Shimizu, defensor público do Estado de São Paulo e doutor em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP), a autorização da prisão em segunda instância foi alterada mirando casos específicos e de repercussão midiática.
“Esse tipo de política criminal feita pelo STF, de admitir essa execução antecipada contra o texto literal da Constituição quando o STF deveria ser o guardião da Constituição e não aquele que a destrói, é um desvio da ordem democrática. É um desvio da função essencial do STF, de garantia da Constituição Federal”, afirma Shimizu, em entrevista concedida antes de a determinação de Mello ser derrubada. “Essa decisão do ministro Marco Aurélio pode sinalizar uma tentativa de retorno a essa ordem constitucional, se essa decisão efetivamente se cumprir. Isso se não houver nenhum tipo de boicote, se não houver algum tipo de revisão a toque de caixa dessa decisão por outros ministros que são mais contaminados politicamente”.
Cristiano Maronna, presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), também acredita que a decisão do ministro do STF restaurava a validade do texto constitucional.
“O IBCCRIM tem uma tradição que está consagrada no seu estatuto, em seu ato de fundação, que é a defesa do Estado democrático de direito e das garantias fundamentais. A presunção de inocência, que garante que ninguém será tratado como culpado senão após o trânsito em julgado em sentença penal condenatória é uma dessas garantias”, analisa Maronna.
Prisões indevidas
Dados da Defensoria Pública do Estado de São Paulo (DPE-SP) apontam que, desde a decisão do STF em 2016, somente o Tribunal de Justiça do Estado (TJ-SP) expediu 13.887 mandados de prisão com base na nova jurisprudência. No entanto, em 2017, 44% das decisões recorridas pela DPE-SP ao Supremo Tribunal de Justiça (STJ) foram modificadas positivamente, com redução de pena ou absolvição dos acusados.
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O cenário se repete no Rio de Janeiro. Conforme informações da Defensoria Pública do estado, 49% dos habeas corpus apresentados às instâncias superiores atenuaram, quantitativa ou qualitativamente, a pena imposta por instâncias inferiores.
“Isso significa que as pessoas estão sendo presas ilegalmente, injustamente. Até que se processe o recurso nos tribunais superiores elas já cumpriram a pena inteira. Essa orientação da execução provisória da pena tem como consequência muitas pessoas cumprindo integralmente penas de forma ilegal”, ressalta Shimizu. “É como se o recurso aos tribunais superiores virassem uma mera formalidade. Quando se julga esse recurso, quase que invariavelmente essa pessoa já cumpriu toda a pena que foi aplicada”, acrescenta o especialista.
Argumentos contrários
Em coletiva de imprensa realizada nesta quarta-feira (19) pelo Ministério Público Federal (MPF) de Curitiba, o procurador Deltan Dallagnol, coordenador da Força-Tarefa da Operação Lava Jato no Paraná, criticou duramente a decisão de Marco Aurélio.
Segundo ele, a decisão do ministro do STF envolve impede a possibilidade de realizar investigações por meio de colaborações premiadas, consideradas pelo procurador como "instrumento essencial de investigação de organizações criminosas".
Quando não existe execução provisória da pena em relação a réus de colarinho branco, não existe perspectiva de punição. E quando não existe perspectiva de punição, ninguém colabora com a Justiça", disse Dallagnol, que defendeu a todo momento que a soltura de presos em segunda instância favorece a impunidade nos crimes de corrupção.
Porém, na opinião de Bruno Shimizu, o argumento é insuficiente. “Independentemente da questão do Lula ter sido preso ou outros investigados na Lava Jato, estamos falando de um punhado de pessoas. Não chega a duas dezenas as pessoas que estariam nessa situação se pegarmos todos os investigados por crimes econômicos. Isso é irrelevante do ponto de vista da administração prisional. Por outro lado, o que assistimos foi um incremento muito grande de pessoas pobres, pretas e periféricos, a 'clientela' preferencial do sistema penal, que vinham respondendo o processo em liberdade, antes do julgamento dos recursos nos tribunais superiores”, enfatiza.
Shimizu avalia ainda que o Estado democrático de direito se enfraquece quando os tribunais passam a dar sinais de que estão dispostos a violar a Constituição em nome de interesses políticos.
Edição: Daniel Giovanaz