“Como se pode falar em Estado democrático de direito quando esse mesmo ente público é um dos principais agentes da violência?”. É o que pergunta Edson Teles na apresentação do relatório “Tortura em Tempos de Encarceramento em Massa”, lançado pela Pastoral Carcerária Nacional.
O documento aborda a institucionalização da violência contra as pessoas encarceradas através sistema penal como agente de controle social e é resultado do acompanhamento feito pela Pastoral de 175 casos de tortura e outras violações de direitos no sistema prisional, denunciados entre julho de 2014 e agosto de 2018.
A enorme população carcerária paulista - correspondente a cerca de um terço do total de pessoas presas no país - faz com que grande parte das denúncias (68 casos) venham de São Paulo, seguido por 16 de Minas Gerais e Goiás, e oito no Mato Grosso do Sul.
A tortura tratada pelo documento não se limita a prática individual, como as agressões físicas e psicológicas sofridas pelos detentos, mas abrange a tortura institucional cometida pelo sistema carcerário brasileiro através da falta de garantia de direitos básicos.
Os relatos de agressões físicas coletados pela Pastoral Carcerária Nacional correspondem a 58% dos casos. Contudo, 41% das denúncias revelam as condições degradantes do cárcere, como por exemplo a insalubridade das celas e deoutros espaços das prisões, sendo 35% delas sobre a negligência de alimentação, vestuário, produtos de higiene e roupas de cama. Além disso, 33% relataram a falta de assistência à saúde.
Agentes da tortura
Em 46% das denúncias foram apontadas a participação de agentes penitenciários e em 14% de policiais. Porém, o relatório destaca que alguns dos casos de tortura envolvem mais de um agente público e em outros não foi possível identificar o órgão do qual o agente fazia parte (muitos atuam sem identificação visível e/ou mascarados).
As denúncias recebidas pela Pastoral vieram de 23 estados, mais o Distrito Federal. Chamam atenção pela crueldade casos como o de uma delegacia no Rio Grande do Sul (RS), onde pessoas ficaram detidas por dias em postos móveis - os “camburões” -, ou ainda o relato de um preso de Goiás, que denunciou por meio de uma carta as agressões cometidas contra ele por cerca de 12 policiais.
“Fui ao hospital duas vezes. Eu estava com uma dor muito forte do lado esquerdo do peito e não conseguia dormir, me deram vários remédios. Eu tossia, e pelo menos a cada um ou dois dias eu cuspia sangue, isso quase dois meses depois de me baterem”, diz a carta.
De acordo com dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) de 2016, a população prisional brasileira é de 726.712 pessoas. Grande parte delas fica em celas superlotadas, já que o déficit é de 358.663 vagas. A pior taxa de ocupação pertence ao Amazonas (AM), com 484%. São 2.354 vagas para 11.390 pessoas privadas de liberdade.
Seletividade penal
No Brasil, falar sobre o sistema prisional é falar também sobre o encarceramento em massa da juventude negra. Segundo o Infopen, 64% dos encarcerados são negros, e 55% tem de 18 a 29 anos. “Quando um jovem negro é assassinado pela polícia, uma das primeiras coisas que são levantadas é qual o antecedente criminal dele, como se no Brasil houvesse uma pena de morte.” aponta Gabrielle Nascimento, que escreveu o artigo “O GIR [Grupo de Intervenção Rápida] o corpo negro como laboratório”, que integra o relatório da Pastoral Carcerária Nacional.
Ela ressalta que a violência contra o corpo negro é legitimada novamente quando ele já passou pelo sistema prisional: “Isso é um dos grandes triunfos do cárcere. Ele produz vidas descartáveis e corpos violados através dessa pecha de criminoso”.
Em seu artigo, Nascimento discute a pouca tolerância à manifestação e reivindicação por direitos dentro dos presídios, o que reforça a ideia da tortura como estruturante do cárcere. "É quase inócuo falar em denúncias de tortura quando as condições de encarceramento no Brasil são torturantes por si só.”
Um dos símbolos da institucionalização da tortura nos ambientes de privação da liberdade é a atuação dos GIR, que nascem com a justificativa de dar respostas rápidas às demandas concretas dos presos, que estavam mais “audaciosos”. Conforme as denúncias recebidas, há ocasiões em que o GIR está 24 horas dentro das prisões, com cachorros e armamentos não-letais que podem se tornar letais de acordo com a forma que são utilizados. Ela ainda destaca que o GIR, nos presídios femininos, , pune com espancamentos as pessoas que não performam a feminilidade conforme as expectativas de gênero, usando frases como “se você quer ser homem, você vai apanhar igual homem.”
“O Brasil nunca lidou com essa herança histórica de uma forma responsável, então o cárcere hoje é uma maneira de sumir com os nossos problemas. É importante que os setores progressistas como um todo olhem e deem a devida importância para essa pauta. É preciso tomar essa discussão como central.” conclui.
Tortura estrutural
As políticas disponíveis para o combate da tortura nos presídios, porém, não são suficientes para a erradicação do problema, já que funcionam através de um sistema de monitoramento dos espaços de privação da liberdade. Paulo Cesar Malvezzi Filho, um dos responsáveis pelo relatório e escritor do artigo “Entre engrenagens e mecanismos: para uma crítica das políticas de prevenção da tortura no sistema prisiona” conta que acreditava-se que com mais organizações e instituições fiscalizando as condições do sistema prisional, haveria menostortura. Uma expectativa que não se confirmou.
“Hoje, existe um número absurdo de instituições que de fato realizam inspeções e produzem relatórios sobre as condições de encarceramento no sistema prisional. Mas essa constelação de mecanismos de monitoramento não se mostrou um fator de erradicação da tortura.”
O motivo disso, segundo ele, é a tortura estar presente na estrutura da experiência prisional. “Ela funciona para a manutenção da disciplina nesses espaços, e para que a pena seja muito mais grave do que está colocado em lei”, finaliza.
Edição: Pedro Ribeiro Nogueira