Na noite desta segunda-feira (26), deixaram o estado de São Paulo os últimos médicos cubanos que integravam o Mais Médicos no estado. O governo de Cuba anunciou a saída no dia 14 de novembro. A decisão foi tomada após o presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL) anunciar que faria alterações nos acordados firmados desde o início do programa.
Em nota, o governo cubano destacou que, perto da data de expiração do contrato em 2016, o país continuaria a participar no acordo com a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) para a aplicação do Programa Mais Médicos “desde que mantidas as garantias oferecidas pelas autoridades locais ".
Dessa forma, segundo o Ministério da Saúde Pública de Cuba, as mudanças no contrato, iniciado em 2013 e ratificado em 2017, aliadas as declarações depreciativas feitas por Bolsonaro aos médicos do país, foram determinantes para a saída dos profissionais do programa.
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A maior parte dos médicos cubanos atuou em áreas periféricas das grandes cidades e municípios menores com pouca infraestrutura. Os profissionais ocuparam as vagas que foram anteriormente ofertadas a médicos brasileiros e a estrangeiros de outras nacionalidades.
“A medicina cubana está baseada na humanidade. O povo brasileiro estava um pouco carente por parte da saúde e a gente veio trazer o melhor que a gente sabe fazer que é a saúde”, afirmou a médica cubana Valia Oliveira Bitencourt. Ela trabalhou no Brasil por um ano e três meses em Itaquaquecetuba, em São Paulo.
Segundo levantamento feito pela Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), estes profissionais estiveram em mais de 2.800 cidades e nos 34 distritos de saúde indígenas. "O número de médicos cubanos da cooperação foi sendo gradualmente reduzido, nos últimos cinco anos, de mais de 11 mil para cerca de 8,3 mil".
Neli Aravecchia, integrante do coletivo de bordadeiras Linhas de Sampa, foi ao aeroporto para agradecer e homenagear os médicos cubanos: "Eles vão deixar um vazio enorme em muitas regiões do país. Eles eram a esperança para um povo que nunca tinha visto um médico na frente", lamenta.
Os primeiros médicos começaram a voltar para Cuba em 22 de novembro. Segundo a Opas, a previsão é que os últimos cubanos deixem o Brasil até 12 de dezembro.
Primeiro brasileiros, depois estrangeiros
Apesar de toda a polêmica envolvendo os médicos cubanos, a prioridade no preenchimento das vagas foi dos médicos formados no Brasil.
“Desde o começo, o chamamento foi em primeiro lugar aos médicos brasileiros. A primeira demanda foi de cerca de 16 mil médicos. Cerca de 17 mil médicos brasileiros compareceram no edital. Se inscreveram pelo computador - mais ou menos como aconteceu agora -, mas não se apresentaram nas unidades de saúde. Não foram atender à população”, conta Alexandre Padilha, ministro da Saúde na época da criação do programa.
Em seguida, as vagas foram ofertadas para os médicos brasileiros formados no exterior que não tiveram seu diploma revalidado pelo governo brasileiro. Este reconhecimento é feito por meio da prova chamada de Revalida.
“O Brasil sofria o mesmo que outros países sofrem: a dificuldade de garantir profissionais médicos nas áreas mais remotas”, explica Padilha. Apenas as vagas que não foram preenchidas por médicos brasileiros foram abertas para os estrangeiros de várias nacionalidades.
O ex-ministro da Saúde conta que, no momento da criação do programa, existiam 700 municípios brasileiros que não tinha nenhum médico para atender a população.
“Cerca de 11 mil vagas não foram preenchidas naquele momento. Procuramos a Organização Pan-Americana de Saúde que nos ajudou a construir o diálogo que vínhamos fazendo com o Ministério da Saúde de Cuba. E montamos uma forma de trazer esses médicos para o Brasil, que preencheram essas vagas”, diz.
Os cubanos foram os últimos na lista de prioridade para a alocação de vagas. Isto significa, que estes médicos foram trabalhar em locais onde os profissionais brasileiros e de outras nacionalidades não quiseram ir. Eles estiveram em mais de 2.800 cidades e nos 34 distritos de saúde indígenas.
O vereador Toninho Vespoli (PSOL-SP) também compareceu ao aeroporto e lamentou a saída dos médicos cubanos. "Eu moro na região de Sapopemba e, por exemplo, no posto de Iguaçu, três dos seis médicos eram cubanos", ressalta. "A formação dos médicos [no Brasil] é individualista, é para se ganhar dinheiro. É claro que há exceções nesse processo formativo. Mas, no caso dos cubanos, eles não ligam de ir para um lugar distante, periférico, porque é uma outra concepção de vida, de formação. E o governo Bolsonaro, em uma irresponsabilidade, está deixando a população mais desprotegida sem médico nenhum", finaliza.
Dados divulgados pelo Ministério da Saúde de Cuba indicam que em cinco anos de trabalho, cerca de 20 mil médicos cubanos atenderam 113.359.000 pacientes em mais de 3.600 municípios. Estes profissionais chegaram a cobrir um universo de 60 milhões de brasileiros na época em que constituíram 80% de todos os médicos participantes do programa.
Quem paga os cubanos?
Os médicos cubanos são funcionários do Ministério da Saúde Pública de Cuba. Por esta razão, o governo brasileiro não tem contratos individuais com os profissionais cubanos.
“Eu sou servidor público municipal. Se eu tiver que cumprir uma missão fora da cidade, em outro estado, meu salário vai continuar sendo pago pela prefeitura de São Paulo”, exemplifica Thiago Barbosa, integrante do Movimento Paulista de Solidariedade à Cuba.
O acordo de cooperação, que permite a participação dos profissionais cubanos no Programa Mais Médicos, foi firmado com a Organização Pan-Americana da Saúde/Organização Mundial da Saúde (Opas/OMS). O Brasil paga à Opas o valor previsto em contrato, que, por sua vez, repassa a quantia para o governo cubano.
Missões Internacionais
A atuação de médicos cubanos em outros países não é novidade. De acordo com o governo cubano, em 55 anos, 600 mil missões internacionalistas foram realizadas em 164 países. Estas ações envolveram mais de 400 mil trabalhadores de saúde.
Caridad Mirian Brindes é uma das médicas cubanas que vieram para o Brasil. Ela atuou durante um ano e três meses no município de Andradina, em São Paulo. “Estamos acostumados a prestar solidariedade com outros países que precisam de nós. Isso foi o que me motivou [vir para o Brasil]. Solicitaram meu apoio como médica. E eu vim. Simplesmente, vim voluntariamente para este país. E sinto satisfação por ter cumprido esta missão com todo meu amor e com o conhecimento que tenho de 34 anos de trabalho”, contou a médica pouco antes de sua partida no Aeroporto Internacional de Guarulhos.
O país caribenho atuou no combate ao ebola na África, a cegueira na América Latina e no Caribe, a cólera no Haiti. Participou de 26 brigadas do Contingente Internacional de Médicos Especializados em Desastres e Grandes Epidemias "Henry Reeve" no Paquistão, na Indonésia, no México, no Equador, no Peru, no Chile, na Venezuela, entre outros países.
Ainda segundo informações oficiais do governo da ilha, na maior parte das missões “as despesas foram assumidas pelo governo cubano. Da mesma forma que, em Cuba, 35.613 profissionais de saúde de 138 países foram treinados gratuitamente, como expressão da nossa solidariedade e vocação internacionalista”.
Cuba alcançou em 2015 uma taxa de mortalidade infantil abaixo de cinco para cada mil nascimentos, dado que coloca o país entre os 40 melhores do mundo no quesito. Além de desenvolver a primeira e única vacina contra a meningite B, o país obteve novos tratamentos para combater a hepatite B, o vitiligo e a psoríase, e foi a primeira nação do planeta a eliminar a transmissão materno-infantil de HIV, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).
Entenda o Mais Médicos
O programa Mais Médicos foi criado em 2013 pela então presidenta Dilma Rousseff com o objetivo de enviar profissionais da saúde para regiões pobres e que não tinham cobertura médica. Segundo a Opas/OMS, mais de 60 milhões de brasileiros são cobertos pelo Programa Mais Médicos.
A organização internacional ligada a ONU considera o programa Mais Médicos como “um dos projetos mais audaciosos para a cobertura equitativa e universal da atenção primária à saúde no mundo e como uma das melhores práticas de cooperação sul-sul na Região das Américas”.
O estudo “More doctors for deprived populations in Brazil” aponta um aumento na cobertura de atenção básica de 77,9% para 86,3%, entre 2012 e 2015, em mais de mil municípios que aderiram ao programa. E uma queda nas internações por condições sensíveis à atenção primária (que são internações evitáveis), de 44,9% para 41,2% no mesmo período.
Além do envio de médicos para áreas onde faltavam profissionais, o programa previa a ampliação do número de vagas nos cursos de graduação, especialização e residência médicas, além de melhoria na infraestrutura da saúde.
Edição: Pedro Ribeiro Nogueira