“Um grande diferencial é que nosso café é um produto puro. Não existe mistura no nosso café. Nós realizamos o processo de classificação do nosso café, separamos por lote, por qualidade do nosso produto. Não existe mistura: é um café 100% arábico sem nenhum produto que venha descaracterizar seu sabor original”, conta Roberto Carlos do Nascimento, uma das centenas de moradores do acampamento Quilombo Campo Grande, que reúne 450 famílias sem-terra no município de Campo do Meio, localizado no sul de Minas Gerais.
A região, conhecida por ser a maior produtora de café do Brasil, é berço do café orgânico e agroecológico Guaií, fruto do trabalho das famílias que ocupam o terreno desde 1998. Roberto Carlos é diretor da Cooperativa Camponesa, que assina a marca do café Guaií, e, com muito orgulho, relata que há oito anos os agricultores passaram a fazer a transição para produtos sem insumos químicos, livres de agrotóxicos e sementes transgênicas.
O Quilombo Campo Grande possui quase 4 mil hectares de terra e conta com 11 acampamentos organizados na área. “Hoje temos em torno de 550 hectares de café já plantado e sendo produzido. No ano de 2018, nossas famílias tiveram uma produção em torno de 8500 sacas de café. Para esse fim de ano, até fevereiro, estamos com a previsão de plantar em torno de 400 hectares de café, tendo a possibilidade de alcançar um total de 1000 hectares de café no próximo plantio”, explica Roberto Carlos.
As famílias vivem na área da usina falida Ariadnópolis, da Companhia Agropecuária Irmãos Azevedo (CAPIA), que encerrou suas atividades em 1996, embora ainda possua dívidas trabalhistas que ultrapassam R$ 300 milhões.
Apesar de ocuparem o terreno há mais de 20 anos e da grande produção agroecológica, no início de novembro, uma liminar de despejo foi aprovada pelo juiz Walter Zwicker Esbaille Júnior. Se a decisão for confirmada, após esgotamento dos recursos, as famílias têm sete dias para deixar o local.
O despejo afetaria diretamente mais de duas mil pessoas. As famílias também desenvolvem atividades como plantio de cereais, milho, hortaliças e frutas. Anualmente, o acampamento planta em média 600 hectares. Em relação aos animais, são criados 1200 bovinos, além de dezenas de porcos e galinhas.
“É uma situação muito difícil. É um trabalho das famílias que já tem 20 anos, que iniciou esse processo de organização das famílias nessas terras falidas. Hoje as famílias dão outro caráter, outra condição para essas terras. As famílias fazem a terra cumprir uma boa parte de sua função social e é muito triste saber de uma possibilidade dessas famílias perderem essa condição de ter um espaço para produzir, para buscar uma vida mais digna e justa”, lamenta Roberto Carlos.
Para debater os riscos inerentes da retirada das famílias à força, uma audiência pública foi realizada nesta quinta-feira (22), no Espaço José Aparecido de Oliveira, na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG).
Café Guaií
Referência na produção de café, o Quilombo Campo Grande comercializa os grãos torrados e moídos por meio da participação da cooperativa em feiras e com vendas organizadas pelo setor de produção do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) em nível nacional.
A partir desse processo, o Guaií tem chegado muito além dos outros estados brasileiros. “O café Guaií tem viajado pelo mundo, onde o movimento-sem terra tem parcerias. Diferentes países, entre eles, Estados Unidos e Alemanha. Recentemente tivemos apresentação do nosso café e de outros produtos do movimento na China. Então, há toda uma relação que vem sendo construída também em nível internacional”, diz o diretor da Cooperativa Camponesa.
Produção diversificada
Apesar de o Guaií ser o carro chefe do acampamento Quilombo Campo Grande, as 450 famílias possuem uma produção bem mais extensa. Outro destaque, por exemplo, é a criação de sementes agroecológicas, orgânicas e hortas medicinais pelo grupo de mulheres Raízes da Terra.
Semanalmente, dezenas de mulheres do acampamento se reúnem para cuidar das plantas e ervas medicinais, com o objetivo de produzir produtos fitoterápicos. “Ali nós cuidamos, fazemos canteiros, plantações, podamos, colhemos. Depois da colheita, por exemplo, da camomila, a levamos para secagem, depois da secagem, armazenamos em saquinhos e usamos a outra parte da semente para ser plantada de novo. É assim com todas as ervas medicinais que a gente trabalha”, afirma Ricarda Maria Gonçalves da Costa, que ocupa o terreno há 17 anos. O grupo também produz pomadas para diversos fins, gel de massagem, xarope e até mesmo florais.
A acampada ressalta a importância da união das mulheres em espaços de resistência popular, como o MST. “Isso depende justamente da consciência política de cada uma, para resistir e estar ombro a ombro com os companheiros, e, como sempre, cuidando uma das outras, das nossas crias, não só das nossas plantações. Cuidando dos nossos companheiros também e resistindo. Resistindo mesmo”.
Ricarda Maria nasceu em São José do Rio Preto, na roça, e mudou-se para o ABC Paulista ainda nova. Após trabalhar anos como metalúrgica, construir o acampamento Quilombo Campo Grande mudou sua vida. “Queria pôr a mão na terra de novo, como na infância. E tive esse prazer: chegar aqui e por a minha mão na terra. Fiquei quarenta anos esperando chegar minha vez”, conta.
Entenda o caso
O Decreto Estadual n.º 365/2015 desapropriava 3.195 hectares da falida Usina Ariadnópolis. O documento tinha como proposta desapropriar a área mediante o pagamento de R$ 66 milhões aos empresários. Há dois meses, as famílias do Quilombo Campo Grande chegaram a firmar um acordo em que o Estado se comprometia a pagar o valor em cinco parcelas.
Porém, acionistas da empresa, apoiados pela bancada ruralista e latifundiários da região, não aceitaram o acordo e levaram o caso à justiça contra o governo de Minas Gerais, pedindo anulação do decreto, que já havia sido validado por dois julgamentos.
Através de uma operação jurídica, os empresários retomaram uma liminar de despejo de 2012 referente à falência da usina e que estava parada há mais de um ano. Foi justamente essa a liminar aprovada pelo juiz Esbaille Júnior no último dia 7, e que foi objeto da audiência desta quinta.
Michele Neves, coordenadora do Centro de Referência em Direitos Humanos da região, avalia que, caso o despejo aconteça, será um grande retrocesso que atingirá não só os sem-terra, mas todo o município, já que a produção movimenta a economia da região.
“Se antes, a produção lá era apenas de cana de açúcar, hoje se produz mais de dez variedades de hortaliças e orgânicas”, destaca Neves, que acrescenta que a estrutura das famílias é tão grande que os moradores estão mais próximos de um assentamento bem estabelecido do que de um acampamento de fato.
“A situação é muito grave. Com uma ação jurídica desnecessária e muito duvidosa, porque não teria a necessidade desse caráter de urgência. No pedido de despejo das famílias, afirmam de forma mentirosa, mentirosa mesmo, que já tem uma área plantada e arada, arrendada para uma outra pessoa, outra empresa, mas isso não é verdade. Toda área está ocupada por famílias, divididas em lotes, com suas casas. Nos últimos dois anos foi instalada a rede de energia elétrica para a maioria das famílias que estão lá”, afirma a coordenadora do Centro de Referência em Direitos Humanos e moradora do Quilombo Campo Grande.
Segundo ela, a população local manifesta muito apoio aos sem-terra, e, inclusive, empresas do município organizam um abaixo-assinado contra o despejo.
Edição: Pedro Ribeiro Nogueira