Saúde

O que o Brasil perde com a saída de cubanos do Mais Médicos?

Cerca de 28% do total de municípios do país contava apenas com profissional cubano para atender a população

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Cubanos atuavam em quase 3 mil municípios e em regiões de difícil acesso
Cubanos atuavam em quase 3 mil municípios e em regiões de difícil acesso - Foto: Divulgação

A saída de 8.469 médicos cubanos do Programa Mais Médicos, anunciada pelo governo daquele país na última quarta-feira (14), após declarações consideradas "depreciativas" e "ameaçadoras" por parte do presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL), vai impactar na saúde de 28 milhões de brasileiros, de acordo com estimativa da Confederação Nacional dos Municípios (CNM).

Os profissionais atuavam em todas as regiões do país, em 2.857 municípios, e sua saída deve afetar especialmente os municípios do Norte e do Nordeste e as periferias das grandes cidades. De acordo com a Organização Panamericana de Saúde (Opas), a maior parte dos municípios onde os cubanos atuam tem 20% ou mais da população vivendo em extrema pobreza. 

Cerca de 1.575 municípios, ou seja, 28% do total de municípios brasileiros, contavam apenas com atendimentos de cubanos por meio do Mais Médicos, muitos deles localizados em regiões de difícil acesso. Cerca de 80% desses municípios que contam exclusivamente com profissionais cubanos tem menos de 20 mil habitantes, de acordo com levantamento da Associação Brasileira de Municípios, que divulgou carta aberta cobrando ações de Bolsonaro para reverter a situação.

Felipe Proenço de Oliveira, da Rede de Médicas e Médicos Populares, ressalta que mais de 700 municípios tiveram um médico pela primeira primeira vez graças ao programa e os cubanos atuam especialmente em municípios com população em situação de extrema pobreza, locais que são rejeitados pelos médicos brasileiros.

“A saída dos médicos cubanos, que foi provocada pelo presidente eleito Jair Bolsonaro, vai impactar diretamente naquelas regiões que historicamente não contavam com assistência médica, daquelas populações que cansaram, no período anterior a 2013, de procurar o posto de saúde e a única resposta que recebiam era que faltavam médicos”, afirma.

Doutor em saúde coletiva, Oliveira informa que em muitos lugares são os médicos cubanos responsáveis pela atenção básica. “Mesmo municípios de médio porte serão afetados. Ponta Grossa, no Paraná, é um exemplo onde cerca de 75% dos médicos da atenção básica são cubanos. Então tanto municípios de pequeno porte, quanto de médio porte e também nas periferias das grandes cidades, o impacto será enorme”, conclui.

Não há um prazo fixado para a saída dos profissionais cubanos, mas estima-se que devem ficar, no máximo, até o final deste ano. O Ministério da Saúde anunciou que irá lançar um edital para a contratação de médicos brasileiros que queiram ocupar as vagas de cubanos. Felipe Oliveira aponta que essa medida não deve ser efetiva, já que as vagas ocupadas pelos cubanos foram ofertadas primeiro aos brasileiros que não quiseram atuar naquelas localidades. “Os brasileiros efetivamente não vão para essas localidades onde os médicos cubanos estão”.

Nordeste

Mais de mil municípios em todos os estados do Nordeste contam com o atendimento de 2.885 médicos cubanos pelo programa Mais Médicos.

Os moradores da região rural do município de Belém, no agreste da Paraíba, são exemplo de brasileiros que serão diretamente afetados. A cidade com 17 mil habitantes conta com oito unidades de saúde da família, da qual seis integram o Programa Mais Médicos – duas com médicos brasileiros e outras quatro com médicos cubanos.

O professor de medicina da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) Marcos Oliveira Vasconcelos é supervisor do programa e conta que a vinda dos médicos cubanos significou atendimento em áreas de difícil acesso, onde dificilmente os médicos se dispõem a ir.

“Na prática, o programa Mais Médicos significou médicos mais presentes, o que permite outro nível de acompanhamento dos pacientes”, diz Vasconcelos, que ressalta como consequência a diminuição de busca por atendimento em hospital. “Sabemos que a maioria dos médicos no programa são cubanos e eles estão nos lugares de mais difícil fixação de médicos” afirma. 

Ele conta que os profissionais cubanos que atendem na zona rural de Belém também moram no local, o que facilita ainda mais o atendimento. “No início havia dúvidas se funcionaria a comunicação em ‘portunhol’, mas eles conseguem conversar muito bem com os pacientes e a população gosta muito do atendimento”. O professor avalia que a saída dos cubanos irá provocar uma perda na assistência da população que está distante e tem dificuldade de acessar os serviços de saúde da zona urbana. 

População indígena e ribeirinha

De acordo com levantamento do portal De Olho nos Ruralistas, cerca de 90% dos médicos que atuavam pelo programa Mais Médicos em áreas indígenas eram cubanos. São 321 profissionais, dos quais 289 vem de Cuba, atendendo 642 mil indígenas em 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs). De acordo com a Secretaria de Saúde Indígena do Ministério da Saúde do Brasil (Sesai), o programa aumentou em 79% o atendimento aos indígenas.

Sarah Segalla, médica que trabalha na supervisão do Mais Médicos em áreas ribeirinhas na Amazônia, lembra a dificuldade de chegar em comunidades tradicionais. “São áreas realmente de difícil acesso. Chegando lá, encontramos comunidades com alta vulnerabilidade, baixo IDH, baixa renda e com problemas de doenças infecciosas”, diz. 

A 1200 quilômetros da capital Manaus, o município São Paulo de Olivença conta com oito médicos cubanos e dois peruanos. Segalla relata que os médicos peruanos atuam no hospital, enquanto os cubanos na atenção básica.

“Essas comunidades vão perder 100% dos profissionais responsáveis pela atenção básica. Por mais que existam médicos no serviço hospitalar, eles estão ali para apagar fogo. Quem realiza mesmo o cuidado das comunidades são os médicos da atenção primária, são os médicos de família e comunidade que cuidam das doenças crônicas, diabetes, exames preventivos, pré-natal", explica.

"Nos casos dos municípios onde eu trabalho, tem hospital, mas qual o acesso da comunidade ribeirinha, que fica a duas horas de barco, a um hospital em uma situação de maior gravidade?", questiona a médica. "Os profissionais cubanos que atendem nessas áreas dormem na comunidade, atendendo qualquer situação que aparecer, de acidente com cobras, infarto, parto, situações agudas eram tratadas por eles", afirma. 

Edição: Diego Sartorato