O programa no Jardim da Política da última semana conversou com o rapper e compositor paulista Crônica Mendes, criador do grupo A Família, e que desde 2012 também está em carreira solo. Seu último trabalho foi "Aos que Caminham", lançado em 2017. Sempre preocupado com as questões sociais são um verdadeiro manifesto ao amor, à justiça e contra toda forma de opressão.
A entrevista teve como foco a relação entre política e manifestações artísticas, em especial após a eleição do candidato de extrema direita Jair Bolsonaro (PSL). "Por incrível que pareça, ainda mais nos eventos atuais, eu ainda acredito na política como principal meio para que a gente possa alcançar a tão sonhada sociedade mais igualitária, mais justa, mais humana", comentou o músico.
Mendes também falou sobre a relação entre as organizações de esquerda e a população que habita as periferias do país: "O que falta hoje na periferia, muito mais que saúde e segurança, é conscientização. Nosso direito como cidadão é votar e cobrar, não ficar de braços cruzados esperando que eles façam por nós", analisou.
Confira a entrevista completa abaixo.
Brasil de Fato: De que modo a política, no sentido mais amplo da palavra, te move e inspira teu trabalho?
Crônica Mendes: Por incrível que pareça, ainda mais nos eventos atuais, eu ainda acredito na política como principal meio para que a gente possa alcançar a tão sonhada sociedade mais igualitária, mais justa, mais humana. Ainda acredito na política como o único meio para que a gente possa provocar a revolução que o rap nacional tanto cantou em suas letras.
A revolução não vai ser televisionada, mas ela não pode ser "solta". A gente precisa ter o braço político para que ele seja de fato benéfica para nosso povo, para nossas crianças, para nossos professores, para todas as favelas do Brasil. O rap nacional sempre buscou essa revolução. Nem sempre o rap teve uma relação direta com a política como vem tendo ultimamente. A gente vê grandes nomes se posicionando, buscando, até mesmo através das eleições, um mandato para que possa representar o rap e a periferia do lado de lá da política.
Pode ser que eu seja um sonhador solitário, mas ainda acredito na política, na democracia. Por mais que a gente esteja vivendo um momento tão delicado - a democracia permitiu esse momento -, eu, ainda assim, acredito ser necessário ter um braço político forte, popular.
Você comentou um pouco sobre o papel do rap. Eu queria saber: a arte, de modo geral, qual é o papel dela na política?
Eu acredito que a arte não pode ser simplesmente para entreter. Eu acho que a arte tem que provocar. Tem que despertar, incentivar as pessoas. Para que as pessoas também possam ter seu próprio domínio e conhecimento sobre o que é a política: qual a função, como funciona, como ele desenrola e influencia nossa vida. A arte tem que provocar, tem que ser cada vez mais participativa dentro do cenário político. Claro, sem perder suas raízes, sem perdes seus outros lados aos quais a arte tem que estar atenta.
Ela é fundamental para que a gente possa despertar o interesse popular pela política e pela conduta dos nossos governantes. A arte também tem o poder de despertar as pessoas para o interesse coletivo e não só individual.
Você, pessoalmente, é um artista bem contestador. Suas letras sempre falam de questões sociais relevantes. Como você pretende trabalhar sua arte a partir do próximo período que o Brasil vai viver, sob essa ameaça de censura do futuro governo Bolsonaro?
A ideia é manter a luta. Agora é resistência pela nossa existência. Não é só resistir, é resistir para que possamos existir. A gente sabe que não será nada fácil. O rap sempre bateu de frente com o sistema. Minhas letras sempre abordaram os temas políticos, temas sociais, grandes lutas, as que eu sempre acreditei que eram lutas nossas. Agora, como bombou nas redes: ninguém deve soltar a mão de ninguém. Isso não pode ficar só nas redes sociais. A gente tem que cumprir de fato o papel de eleitor, mesmo sendo oposição, a gente tem que ir para as ruas cobrar uma política que seja voltada para as minorias em questões sociais, mas que são maiorias populacionais. A gente vai ter que lutar como lutava nos anos 90, mas hoje temos outras armas, caminhos e braços para lutar.
A luta se intensifica, a resistência se intensifica. Eu estou direcionando minha arte para isso: para a resistência, para nossa existência.
Você comentou em minorias sociais, maiorias populacionais. Sua arte também está muito conectada com a realidade das periferias, principalmente da cidade de São Paulo, onde você mora. Quais são as prioridades dos moradores de periferias no Brasil, principalmente para juventude: do que é preciso, nesse momento, se falar?
Durante muito tempo, eu acreditei em algumas coisas que faltavam para a periferia. Nós lutamos, enquanto rap, movimentos sociais, articulador cultural da quebrada. Com o resultado dessas eleições eu fiquei muito assustado, porque o Bolsonaro foi eleito pela periferia. Ele não foi eleito pela classe média ou classe alta. Não foi. A periferia tem muita culpa no cenário atual que estamos atravessando e que iremos atravessar. Isso me deixou muito assustado. Nós lutamos e somos periferia, e a própria periferia acabou dando nossa cabeça na bandeja para o inimigo. Isso é assustador.
Eu não tenho mais certeza se aquilo que eu acreditava que faltava na periferia era só aquilo: a questão da educação, da transformação social, do despertar das mentes para que possamos ter novas lideranças comunitárias, lideranças revolucionárias dentro das comunidades para que nós pudéssemos nós mesmos desenvolver nossa cultura e a cidadania dentro das periferias, sem isentar o Estado de suas obrigações para com a periferia. Eu não sei se aquilo tudo que a gente lutou, se é só isso que continua faltando hoje. Tem um grande interrogação sobre o que de fato falta para a periferia. Nós sabemos que muitos dos nossos que foram votar no candidato oposto, foram por mágoa, por ódio, por sentimento de abandono. De fato, nós temos duras críticas ao governo do PT. O PT já reconhece isso. Eu achei muito lindo da parte do PT dar a cara a tapa, reconhecendo esses erros e ainda assim se dispor a caminhar pelas periferias, como o [Fernando] Haddad fez. Foi lindo.
Eu enxerguei isso, mas a periferia não: o candidato que errou e sabe que errou, abrindo para admitir os erros do partido. Não é todo partido que admite seu erro. O que falta hoje na periferia, muito mais que saúde e segurança, é conscientização. Do mesmo jeito que o PT abandonou as bases, os jovens militantes que estavam nas periferias foram ocupar cargos em outros ares e não se fomentou nenhum trabalho de base, não deixou nenhum outro líder. As lideranças pararam de surgir e, com isso, a periferia ficou abandonada. A periferia também não foi cobrar. A periferia cruzou os braços, a gente tem culpa nisso. Quando digo "a gente", também me incluo nessa lista. A gente elegeu e deixou de cobrar. Achou que elegendo estava bom e que nosso papel estava feito, que o governo faria tudo por nós. Nós esquecemos de cobrar. Nosso direito como cidadão é votar e cobrar, não ficar de braços cruzados esperando que eles façam por nós. Não fizeram como a gente esperou, ficamos magoados e devolvemos esse ódio nas eleições. Muito mais que educação, também falta conscientização.
Edição: Pedro Ribeiro Nogueira