Palavras como "refugiado" reduzem pessoas a categorias que sugerem impotência
Por Vijay Prashad*
Sentado em seu escritório, Donald Trump se reúne com o chefe de seus conselheiros econômicos, Gary Cohn. Cohn brinca com Trump. Ele diz “faça um discurso e fale que o muro na fronteira EUA-México está pronto para ser construído: os materiais estão em mãos, o trabalhador está ansioso. A única coisa que os engenheiros estão preocupados é como soletrar - em mais de 200 quilômetros de fronteira - a palavra TRUMP". Trump não se diverte. Ele não gosta de piadas às suas custas. Tem outras ideias. A caravana da América Central rumo ao norte, diz ele, "é como uma invasão". Linguagem pesada é o seu estilo. Imigração é a galinha dos ovos de ouro. Ele não tem nenhum interesse real no muro. Ele está mais interessado em usar os imigrantes como uma maneira de alimentar medo e divisão. É a maneira neofascista.
Ao longo da extensão da América Central e do México, caravanas de seres humanos caminham em direção à fronteira dos Estados Unidos (a foto abaixo faz parte de retratos das pessoas em marcha feitos por Sean Hawkey). A primeira caravana de quatro mil pessoas chegou à cidade de Matías Romero no estado de Oaxaca no primeiro dia de novembro. A segunda caravana, de quase duas mil pessoas, entrou no México em Huixtla, estado de Chiapas, enquanto uma terceira caravana de quinhentas pessoas deixou El Salvador para buscar asilo no México e uma quarta caravana, de quase duas mil pessoas, partiu de San Salvador e chegou à cidade guatemalteca de Tecún Umán, na fronteira mexicana. Cada uma dessas caravanas foi determinada a fugir de locais em que as pessoas pensavam ter falhado. Isso traz à mente as palavras da poeta somali-britânica Warsan Shire:
ninguém deixa o seu lar a menos que
seu lar se torne a boca de um tubarão
você só corre até a fronteira
quando você vê que toda a cidade também correu
"Ninguém esperava essa avalanche humana", disse o ex-congressista hondurenho Bartolo Fuentes, que primeiro disse que pagaria o trajeto das pessoas para os Estados Unidos. Na minha reportagem no Frontline, eu detalhei a história da primeira caravana e as razões do porquê as pessoas decidiram tentar a sorte no "corredor da morte" em direção ao Norte. Parte das histórias incluem a mudança climática e os acordos comerciais adversos para os pequenos países da América Central. Mas há também uma história mais longa de desestabilização política pela intervenção dos EUA - alguns dos quais remontam ao século XIX - bem como o crescimento de uma economia baseada em drogas, o que gerou mais violência em lugares que esperavam que o fim do genocídio, conduzido por regimes militares dos anos 80, traria um período de paz. O genocídio continua, como tratores e barragens destroem o modo de vida dos pequenos agricultores e das comunidades indígenas. O assassinato da ativista Berta Cáceres em Honduras é um sinal da violência que expulsou as pessoas de seus próprios lares. O julgamento de seus assassinos está um caos, a impunidade é outra razão para as pessoas fugirem. Não ajuda que os Estados Unidos, o dragão que chicoteia com o rabo e cospe fogo nesses países, se autointitule, ao mesmo tempo, como "terra da oportunidade". A força militar e o capital dos EUA não têm fronteiras; apenas pessoas com poucos recursos correm para essas fronteiras. Sua casa se tornou a boca de um tubarão. "Mapas em nossas costas", canta o poeta palestino Jehan Bseiso, "longo caminho de casa".
Palavras como "refugiado" (e até "migrante") enganam. Elas reduzem pessoas a categorias que sugerem impotência. É como se as pessoas nas estradas nestas caravanas ou nos barcos no Mar Mediterrâneo fossem dignas de pena (se você é uma pessoa de disposição sensível) ou de ódio (se você é uma pessoa que esqueceu o que significa ser humano). Mas as pessoas caminhando ou nos barcos não estão sem suas próprias aspirações e energia, ou sem o próprio senso de si, do que estão fazendo e por que estão fazendo isto.
Quando atravessam as fronteiras implacáveis, elas vão ao trabalho: construindo casas, encontrando emprego, criando filhos (a foto acima é de Yara A. Bsaibes em uma série de foto sobre trabalhadoras migrantes em suas casas temporárias). Eles ganham dinheiro e depois o enviam às suas famílias que estão em casa. Mesmo no campo de refugiados de Zaatari, em Mafraq (Jordânia), existem agências de transferência de dinheiro que recebem dinheiro de refugiados sírios e enviam para seus parentes dentro da Síria. As linhas fora dessas agências em todo o mundo sugerem o imenso sentimento de humanidade que motiva as pessoas que estão refugiadas.
O Banco Mundial calcula que as pessoas refugiadas enviaram um total de US $ 613 bilhões em remessas para seus países de origem, a maioria deles no Sul Global. Para entender a magnitude desse valor, a ajuda total ao desenvolvimento no exterior totalizou US$ 142,6 bilhões. Em outras palavras, os trabalhadores que vivem perigosamente - e existem 258 milhões deles - enviam 4,5 vezes mais dinheiro para seus países de origem do que os estados ricos da América do Norte e da Europa. Empresas de transferência de dinheiro de monopólio ainda mais escandalosas, como Western Union e MoneyGram, cobram uma taxa que varia entre 7% e 10%. A valor retido desses trabalhadores é de US$ 30 bilhões por ano.
Western Union - que vale US$ 5,5 bilhões - e seus confederados recebem US$ 30 bilhões dos trabalhadores pobres deslocados.
O orçamento anual total para a Agência de Refugiados da ONU (UNHCR) é de US$ 8 bilhões.
Por favor, pause e releia estes números (para mais informações, veja meu artigo no Newsclick).
- Ajuda anual total ao desenvolvimento no exterior: US$ 142,6 bilhões.
- Total de remessas anuais de trabalhadores deslocados: US$ 613 bilhões.
- Total de taxas anualmente acumuladas por monopólios de transferência de dinheiro: US$ 30 bilhões.
- Orçamento anual total do ACNUR: US$ 8 bilhões.
O capital e as armas passam sem cuidado pelos guardas da fronteira. As pessoas são retidas nas fronteiras. É essa imobilidade que age como uma faca econômica no intestino dos bilhões de mundos. A falta de mobilidade livre das pessoas facilita salários mais baixos (super-explorados) em algumas partes do mundo, em comparação a outros. Aqueles que conseguem atravessar fronteiras, mas não têm documentos ou têm documentos limitados, são vulneráveis a empregadores que exploram sua vulnerabilidade. Em outras palavras, em ambos os lados da fronteira, os refugiados precisam lutar para sobreviver com salários super-explorados e condições de trabalho precárias.
Não é suficiente falar sobre um muro na fronteira dos EUA com o México. Trump, como seus antecessores no governo dos EUA, quer embargar países que se recusam a reconhecer o domínio dos Estados Unidos sobre seus assuntos. Esta foi a base da Doutrina Monroe (1823), que Trump invocou pelo nome na Assembleia Geral da ONU há alguns meses. A nova frase proferida pelo conselheiro de Trump, John Bolton - a troika da tirania - aponta o dedo de Washington para Cuba, Nicarágua e Venezuela. Trump queria guerra contra um desses países. Agora, com aliados próximos no Brasil e na Colômbia, os Estados Unidos aumentarão a pressão contra esses países e - provavelmente - intervirão em pelo menos um deles.
Cuba chegou à Assembleia Geral das Nações Unidas com a resolução contra o embargo dos EUA ao pequeno país insular. Desde 1992, a AGNU votou pelo fim do embargo. Neste ano, a votação foi de 189 contra o embargo e 2 a favor (os Estados Unidos e Israel). O ministro das Relações Exteriores de Cuba, Bruno Rodríguez Parrilla, apresentou a justificativa para o fim do embargo em seu importante discurso na sessão de 1 de novembro em Nova York. É claro que na política externa o mundo prova a amargura do poder dos EUA e não gosta. Não há apetite - mesmo entre os aliados de Washington - por novas sanções contra o Irã, pelo aumento do embargo a Cuba e pela guerra contra Cuba, Nicarágua e Venezuela. Até o Afeganistão, como observei em meu artigo, continua a negociar com o Irã - apesar de estar virtualmente ocupado pelos Estados Unidos. A história é contra o imperialismo.
Enquanto isso, se você estiver em Havana, há um Festival de Teatro da Juventude (veja acima) que é dedicado a Ramón Silverio. Silverio é o fundador do Centro Cultural El Mejunje em Santa Clara, onde há uma galeria de arte, um teatro, um café e um local para artistas e ativistas LGBTQ respirarem. Ramón Silverio sonha com um "mundo onde todos vivam em harmonia e respeitem as individualidades, não importa se são marxistas, cristãs ou gays". O festival é o oposto da retórica beligerante de John Bolton.
Fronteiras cercam nações poderosas ou encapsulam nações menos poderosas. Mas não há fronteira para a vida selvagem, cujo habitat está sendo seguramente e rapidamente arrebatado. O governo indiano acaba de conceder à Reliance Corporation (patrimônio líquido de US$ 110 bilhões), de propriedade do bilionário indiano Anil Ambani (patrimônio líquido de US $ 2,2 bilhões), 467 hectares da reserva florestal em Yavatmal para construir uma fábrica de cimento. A floresta preciosa será escavada, depósitos minerais (de calcário e dolomita) serão consumidos. Habitantes locais, que convivem com a floresta, serão lentamente, mas seguramente, expulsos.
Uma tigresa chamada Avni e seus filhotes percorriam a área perto da futura fábrica de cimento. O governo disse que ela matou treze aldeões. Ela teve que ser morta. A série de três partes de Jaideep Hardikar sobre a morte do tigre é fascinante - uma leitura essencial (parte 1, parte 2 e parte 3). Também é trágico. Dois filhotes de Avni, de dez meses, sobrevivem. Raj Thackery, do direitista Shiv Sena, disse: "Eu aprendi que Avni foi morta para salvar o projeto de Anil Ambani. O governo vendeu sua consciência para Ambani'.
O World Wildlife Fund acaba de lançar o seu arrepiante Living Planet Report, que mostra um declínio de 60% na população de animais selvagens nos últimos quarenta anos. Os autores do relatório culpam a "humanidade" pelo aumento do consumo. Mais uma vez, os dados aqui são úteis, mas a análise é insuficiente. Não existe "humanidade" por si só, apenas classes e nações, onde algumas classes e certas nações dominam a agenda do planeta. A Reliance Corporation apaga a floresta e pressiona os tigres; os aldeões que são mortos pelo tigre de canto são meramente usados para encobertar processos que estão além deles. O problema aqui não é o fracasso humano, mas o sistema capitalista que transformou a natureza em mercadoria e não se importa com a sua existência. É esse sistema que impulsiona a destruição da floresta Amazônica e do Círculo Polar Ártico. O lucro é mais importante para este sistema do que as pessoas.
"A propriedade privada nos tornou tão estúpidos", escreveu o jovem Marx em 1844.
Chegando na próxima semana: nosso dossiê sobre o retorno do FMI à Argentina. A imagem acima é uma prévia do dossiê. Além disso, faça o download do nosso Caderno, que traz a última entrevista de Samir Amin.
Na próxima semana - segunda-feira - no Rio de Janeiro, nosso escritório no Brasil transmitirá um importante seminário sobre Mudanças no Sistema Mundial e Desafios para o Brasil com Ana Esther Ceceña (UNAM), Beatriz Bissio (UFRJ), Monica Bruckmann (UFRJ) e Samuel Pinheiro Guimarães (ex-embaixador no Mercosul). Você pode acompanhar a conversa em nossa página no Facebook.
O monge beneditino Marcelo Barros escreve sobre o Brasil que não há escolha antes de nós senão reviver o espírito de resistência, reorganizar a esperança e ser militante em nossa insistência por um novo mundo. Preste atenção nele.
Nossa imagem abaixo é de Qiu Jin (1875-1907), uma feminista chinesa, poeta e revolucionária. Depois de fundar a revista feminista e nacionalista, Zhongguo nubao, foi nomeada diretora da escola Datong, uma espécia de campo de treinamento militar para revolucionários camuflado como escola de esportes. Como uma artista marcial, muitas vezes ela se vestia como uma "drag-king" do seu tempo. Com seu primo Xu Xilin treinou revolucionários de seu país. Ambos foram capturados, torturados e executados antes da planejada insurreição na cidade de Anqing. "Não me diga que as mulheres não têm coisas de heróis", ela disse.
*Vijay Prashad é historiador e jornalista indiano. Diretor Geral do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.
Edição: Luiza Mançano