Como resolver o conflito entre a memória e a história de uma ditadura com suas marcas ainda presentes? É em meio a esse dilema que a sociedade espanhola se encontra atualmente face à exumação e à transferência do corpo do ditador Francisco Franco, que hoje se encontra em um memorial em homenagem aos mortos na Guerra Civil Espanhola (1936-1939), o Vale dos Caídos, nos arredores de Madri.
Franco foi o ditador de um regime fascista que acometeu a Espanha entre 1939, com o fim da guerra civil que durou três anos no país e vitimou 500 mil pessoas, e 1975, ano de seu falecimento. Como não faleceu durante a guerra, foi proposta a retirada de seu corpo do Vale dos Caídos, que se tornou um local de peregrinação de admiradores do general fascista.
Aprovada em setembro pela Câmara de Deputados, a medida de exumação e transferência do corpo de Franco tem previsão de ser implementada até o final do ano. "É urgente porque estamos atrasados. Um ditador não pode ter um túmulo de Estado em uma democracia consolidada como a espanhola. É incompatível”, disse a vice-presidenta do governo, Carmen Calvo, sobre a medida proposta pelo Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE), que hoje chefia o Executivo do país.
Mas, antes disso, uma polêmica ronda o desfecho do caso: para onde vão os restos mortais do ditador fascista? Seus herdeiros agora querem que seu corpo fique na cripta da catedral de La Almudena, em pleno centro de Madri, o que conta com uma forte rejeição do governo, que declarou que disporá de mecanismos legais para impedir esse fato. Segundo a vice-presidenta, os restos mortais de Franco devem repousar em "um lugar privado, decente, no qual eles não sejam exaltados".
Para compreender esse processo de reconciliação com a história, o Brasil de Fato conversou com Caroline Silveira Bauer, professora do Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “Todo esse enfrentamento envolve o direito à memória, à verdade e à justiça, quando se consegue efetivamente esses três direitos, nós temos processos mais democráticos”, opina a historiadora.
Para ela, há fortes semelhanças no processo de transição de ditadura para democracia nos casos espanhol e brasileiro, nos quais não houve responsabilização pelos crimes nem abertura total de arquivos para se conhecer a verdade, o que faz com que surjam ainda hoje manifestações de apoio ao período ditatorial.
“Uma das grandes preocupações existentes nesses momentos de transição política, no caso brasileiro e no espanhol, foi manter o controle do processo para que não houvesse responsabilização penal pelas violações de direitos humanos”, afirma Caroline Bauer.
Confira a entrevista:
Brasil de Fato: Quais são as principais características da ditadura franquista e como elas ainda se manifestam na sociedade espanhola?
Caroline Bauer: Essa ditadura guarda muitas semelhanças aos regimes fascistas europeus, o fascismo italiano e o nazismo alemão. Ela se valeu de práticas bastante semelhantes e possuiu ações colaboracionistas entre esses regimes. A ditadura franquista tem um conservadorismo da sociedade espanhola, um grande apoio da Igreja Católica e das forças monarquistas, que haviam sido tiradas do poder a partir da promulgação da República espanhola.
Ela é uma ditadura de décadas, se manteve no poder durante muito tempo, terminou tão somente em função da morte do Franco e deixou muitas marcas na sociedade espanhola. Algumas dessas marcas são marcas físicas mesmo, são estátuas equestres, nomes de ruas, são homenagens, uma série de ações que, desde 2007, com a promulgação da Lei da Memória Histórica, estão sendo revistas e confrontadas. Ainda que alguns assuntos sejam muito sensíveis e boa parte de setores espanhóis seja contrário, por exemplo, à exumação das fossas coletivas dos fuzilamentos e assassinatos ocorridos tanto na Guerra Civil quanto no Franquismo.
Algumas narrativas que foram elaboradas pelo conflito, que são narrativas bastante comuns a sociedades que viveram situações difíceis, situações limites e traumáticas, que é sempre buscar uma responsabilização nas vítimas pelo fato do recrudescimento dos regimes.
Atualmente no Brasil há um discurso positivado sobre o que foi a ditadura, com manifestações que reivindicam esse período. Isso parece ter a ver com o processo brasileiro de transição democrática. Você acha que existem semelhanças do caso do Brasil com o da Espanha?
Uma coisa super importante, que também é uma dessas conexões que não costumam ser feitas, é o fato de que a transição política espanhola foi considerada por juristas e políticos espanhóis, isso inclusive é um termo que é bastante utilizado na Espanha, como uma "transição modélica", por ter sido feita sem acirrar mais ânimos. Algo bastante parecido com o que foi a nossa transição.
E eu até estou indo agora para Barcelona para tentar investigar essas conexões entre a transição brasileira e a espanhola, porque há indícios de que políticos brasileiros tenham ido até a Espanha acompanhar o processo de transição, após a morte do Franco, para aprender de que forma implementar a transição no Brasil para que não houvesse responsabilização penal com a violação de direitos humanos, para que não houvesse acesso aos arquivos da ditadura, como acabou acontecendo no Brasil.
Alguns setores da sociedade espanhola que ainda valorizam o franquismo, a experiência franquista, que têm em Franco um grande ídolo, em determinadas conjunturas, ficam um pouco mais ou menos evidentes em questões sensíveis, como a discussão sobre a exumação do corpo do Franco ou sobre a liberação de arquivos da ditadura.
Esses setores vêm à tona e demonstram a sua simpatia em relação ao ditador e em relação ao regime. Então, não há uma unanimidade na sociedade espanhola a respeito do enfrentamento em relação ao passado, à elaboração de políticas de memória quanto a esse passado e, principalmente, em relação ao enfrentamento da figura do Franco.
Sobre a exumação e a transferência do corpo de Franco, como você acha que isso impacta na sociedade espanhola?
O Vale dos Caídos tem uma particularidade que, de certa forma, representa o que tentou ser a transição política espanhola, porque, ainda que ele contenha o mausoléu de Franco e de diversos soldados e seus apoiadores, ele também tinha vítimas do próprio franquismo.
Então, tem-se uma ideia de construção daquela equiparação de vitimas e vitimatários. É como se houvesse uma memória completa e houvesse vítimas dos dois lados dentro do Vale dos Caídos. Foi uma tentativa de equiparação, que é impossível.
Eu acho que uma das grandes questões pra sociedade espanhola, mas é uma questão totalmente em aberto, não é somente o que vai acontecer com o corpo do Franco e seu mausoléu – que é um local de peregrinação e no dia do seu aniversário e são feitas várias homenagens em toda a Espanha –, mas principalmente com o Vale dos Caídos.
Aí vão desde posturas de manter o Vale dos Caídos como uma ideia e uma memória de que em algum tempo houve essa homenagem a esse ditador e que se construiu essa versão conciliatória da transição política espanhola ou até demoli-lo.
Há também uma movimentação por parte do Executivo para que seja liberado o acesso aos documentos militares da guerra civil e ditadura. O que isso significaria para o país?
Uma das grandes preocupações existentes nesses momentos de transição política, no caso brasileiro e no espanhol, foi manter o controle do processo para que não houvesse responsabilização penal pelas violações de direitos humanos e crimes de guerra. Mas, também, no caso espanhol, para que houvesse o restabelecimento da monarquia, para que mantivesse um certo conservadorismo político.
E nessa conjuntura também foi aprovada uma lei de anistia, no caso espanhol e no brasileiro, e há uma característica intrínseca a essas leis de anistia, impedindo o processamento penal dos responsáveis por violações de direitos humanos. Essa lei de anistia também criava uma certa interdição do passado.
Porque, já que não se iria investigar e nem averiguar os crimes cometidos, para quê conhecê-los? Então, a manutenção desses arquivos fechados faz parte dessa estratégia mais ampla de controle do processo e de um impedimento ao acesso ao conhecimento sobre o passado.
Ainda que em Salamanca hoje a gente tenha muitos documentos sobre o Franquismo, sobre a Guerra Civil, que nos permitam conhecer um pouco o que foi esse regime, o que foi a guerra, acredito que com a liberação dos documentos das Forças Armadas, que é uma das principais demandas agora colocadas, vai se conhecer muito mais e corroborar várias coisas que nós temos informação a partir de fontes primárias, principalmente de depoimentos orais de sobreviventes e de familiares de pessoas que foram atingidas pelo Franquismo.
Por que a sociedade deveria querer que processos de reparação e justiça de ditaduras aconteçam?
Quando a gente fala de justiça de transição, uma das coisas que sempre falamos é que não existe receita para uma transição política. Ela acaba acontecendo de acordo com as forças políticas do momento e com determinados projetos de futuro que essas sociedades tinham no momento em que acontecem essas transições.
Ainda que essas medidas sejam tardias, que bom que elas estão acontecendo. Porque uma das questões mais fundamentais nessas medidas de reparação de justiça histórica é a gente pensar que sim, as vítimas diretas precisam de processos de reparação, mas a reparação, na verdade, é voltada para a sociedade, é pro coletivo que a gente tem que pensar essas medidas.
Se nós continuarmos individualizando os processos de reparação, a gente vai continuar perpetuando nessa sociedade o autoritarismo e uma serie de práticas que estabelecem determinadas conjunturas.
Todo esse enfrentamento que envolve o direito à memória, à verdade e à justiça, quando se consegue efetivamente esses três direitos nós temos processos mais democráticos.
Edição: Luiza Mançano