Minha mãe dizia pra todo mundo que eu queria nascer dançando. Era o jeito doce dela de traduzir as quase 20 horas de trabalho de parto de um bebê que não encaixou, veio ao mundo pelas pernas, “ao contrário”, e que lhe causou tanta dor. Fui arrancada de seu ventre no dia seguinte, quase passando do tempo de nascer, e sob muitos riscos.
Meu pai contava que ela esperou conferir se eu tinha os pés, as mãos, dedos, tudo no lugar e só então desmaiou de exaustão. Nunca mais pode ter um filho normalmente. Meu irmão caçula nasceu por uma cesárea obrigatória.
Minha mãe teve, durante toda a vida, sabor de leite e calor de sopro nas feridas. Seus braços eram vida e sua voz um acalanto; uma espécie de catecismo poético. Ela me via amando a dança e transformou o relato do meu nascimento em algo sublime, como se o sofrimento fosse natural.
Ainda menina, mas já no mundo da política eu li os relatos do grupo Tortura Nunca Mais, na rua do Hospício, na cidade de Recife. Li a história de Vladimir Herzog. Judeu nascido na antiga Iugoslávia, naturalizado brasileiro, torturado e assassinado pelo regime militar nas instalações do DOI-CODI, no quartel-general do II Exército em São Paulo. Meus olhos fixaram a data do dia do assassinato de Herzog: 25 de outubro de 1975. Era o mesmo exato dia em que eu me recusara a sair do ventre de minha mãe e a dilacerara de dor.
Senti uma ligação repentina e inexorável com Vlado (seu nome de nascimento). Uma curiosidade de querer saber tudo sobre ele, sentimentos conturbados e mesclados, um lamento de não ter me deixado parir a tempo de estar no mundo ao mesmo tempo em que ele, como se isso de algum modo confuso e totalmente inexplicável pudesse mudar o rumo das coisas, o curso da história, sua inexorável perda.
Experimentei uma dor por sua morte que me acompanhou durante muito tempo. Chorava e fantasiava que o havia conhecido. Nunca havia diálogos nos sonhos, mas um silêncio reverenciador de ensinamentos nunca vividos senão pelos desejos. A reverência ao homem que morreu por querer mudar o mundo, pela menina que já cresceu no mundo em mudança por ele provocada.
Outros tantos anos depois, quando conheci Ivan, seu filho, no Rio de Janeiro, quase o abracei como a um irmão, mas ele não entenderia. Então apenas disse: eu amava seu pai! Se ele me achou esquisita, intensa ou um tanto estranha não disse nada, ainda bem.
Hoje é de novo a véspera do dia em que nasci e que Vlado foi covardemente assassinado pela ditadura militar. Este ano nossos aniversários de morte e vida acontecem em um tempo histórico cuja probabilidade pareceria pequena se olhássemos a história do Brasil ao revés.
Após anos supostamente sedimentando a redemocratização, estamos às vésperas de uma eleição presidencial de resultado imprevisível, em que novamente a dicotomia ditadura versus democracia está posta, em uma sociedade com fraturas expostas, com setores da população evidenciando uma vocação profundamente conservadora, em que significativa parcela de cidadãos se mostra disposta a viver sob um regime autoritário, sobretudo se conduzido por uma autoridade de personalidade forte.
Há um enraizamento escravocrata profundo no pensamento de nossa sociedade, que também é renitentemente racista e moralmente covarde. Mas, pensando em termos civilizatórios de um período mais recente, e almejando ser bem realista, os indicadores de como chegamos até aqui me parecem estar no fato de que não acertamos as contas com nosso passado.
Somos um país que não enfrentou como registro os anos em que estivemos sob o julgo dos tanques e baionetas da ditadura civil-militar. A Lei de Anistia foi o preço a pagar e significou o silêncio e a impunidade. Nem mesmo o esclarecimento sobre as mortes e execuções foi possível. Apenas em parte se conseguiu algo nesse sentido durante os últimos governos. São muitas as famílias que nunca enterraram seus entes queridos, que constam sob a alcunha de “desaparecidos” nos arquivos oficiais, em atestados de óbito sem data, local de sepultamento ou causa mortis. Apenas o ano.
Como olhar o presente, para construir um futuro com cidadãos que rejeitam a ideia de ditadura, se nenhuma geração, seja a minha ou do meu filho, jamais viu um pau-de-arara, uma cadeira do dragão, uma cadeira de choques elétricos e nada da parafernália usada para submeter mulheres e homens a uma violação de seus corpos e mentes, com requintes de crueldade, pelos agentes do Estado?
Nunca as vimos senão em filmes e relatos tímidos nos livros de História que, a propósito, se permitem ser questionados hoje em dia como uma suposta narrativa de esquerda. Onde eles estão?
No lugar dos DOPS, DOI-CODIs, porões e calabouços, hoje funcionam pinacotecas e inocentes repartições públicas. É como se nunca tivessem existido os aparelhos de repressão, o que, a propósito, é dito de forma descarada por muitos militares e civis defensores do regime como “revolução” ou, para usar um termo mais recente, como “movimento”.
A falta de informação sobre o que foi a ditadura civil-militar é uma forma muito particular e perversa de negação e é, talvez, o principal fator responsável pelo conservadorismo reacionário de boa parte da sociedade brasileira, que permite que se pense em eleger para presidir a nação um indivíduo que defende a tortura, elogia um dos mais vis torturadores e não tem qualquer apreço pela democracia. Muitos ouvem suas frases sem vomitar ou sentir nojo, porque não há empatia de rejeição com o real significado delas.
Os nazistas resolveram cremar os judeus para fazer desaparecer o registro de seus corpos. O aniquilamento, pela ditadura civil-militar, dos que lutavam por liberdade e justiça social no Brasil, não intentou fazer diferente. Quando os corpos não desapareciam após prisão e torturas, jogados em valas, divulgava-se uma versão de tiroteio, de “mortos em combate”, enterrava-se com nome falso. Outra hipótese, como a de Vlado: após o assassinato, forjava-se o suicídio.
Nosso erro como nação foi tentar construir uma democracia verdadeira e sólida sobre os cadáveres insepultos de lutadores assassinados, e ladeados socialmente com seus assassinos impunes. Adotamos o esquecimento como método. E um povo sem memória não sente medo de seu passado tirânico.
Hoje não adianta falar de ditadura como algo evidente ou resumido. Por mais que procuremos, não há uma chave capaz de abrir todas as portas e gavetas. Teremos que ir talhando e remexendo, jogando luz sobre tudo. Reaprender para ensinar.
O resultado eleitoral neste outubro de 2018 pode tornar isso possível ou muito mais difícil, mas a tarefa é certa. É preciso mexer com sonhos adormecidos, mobilizar forças que parecem esgotadas, refazer compromissos que se pensavam extintos, buscar na memória da alma o que há de valor no passado, atualizar o presente para projetar o futuro.
Foi essa força que vi em um homem que já estava morto há 14 anos quando o conheci, mas evocou em mim a necessidade de me recompor com o mundo, mantendo a reminiscência do que nos constitui como iguais, e o amor pelos seres humanos com quem compartilhamos a ideia de uma sociedade fraterna e justa.
Essa resistência para recuperar a memória é condicionante para atingir mentes e corações. Deve ser moeda acima do valor de qualquer outra em circulação no mercado da política, sob pena de nunca sairmos do abismo do esquecimento.
* Tânia Maria de Oliveira é assessora jurídica do PT no Senado e faz parte da executiva nacional da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD)
Edição: Daniela Stefano