A violência, infelizmente, não é privilégio do fascismo bolsonarista
Toda mulher que ocupa espaços de representação na esfera pública passa por situações constrangedores e violentas. A esfera pública, em qualquer lugar do mundo, é pensada como um espaço de predominância masculina com códigos de conduta, vestimenta e mecanismos de qualidade performática, sobretudo na política: via de regra, exige-se que a mulher demonstre controle, força, certezas, sobriedades, introspecção – isto é, que ela reproduza características consideradas masculinas e apague definitivamente as consideradas femininas se ela quiser ter vida longa nesses espaços. No Brasil, as mulheres que ocuparam e ocupam protagonismos na política são diariamente constrangidas publicamente por serem mulheres.
Quem não se lembra da entrevista de Jô Soares com a ex-prefeita Marta Suplicy na qual ele perguntou se ela usava calcinhas vermelhas e ela respondeu se o entrevistador também sentia curiosidade sobre a cor das cuecas do então prefeito do Rio de Janeiro. Quem não se lembra dos constrangimentos diários sofridos pela ex presidenta Dilma Rousseff, que teve a vida devassada e viu sua sexualidade e sua glândula tireoide virarem capas de uma revista de grande circulação nacional. Sem contar a violência que ela sofreu em rede internacional durante a cerimônia de abertura da Copa do Mundo, em 2014.
Aliás, durante o processo de impeachment/golpe, o deputado federal e presidenciável Jair Bolsonaro (PSL) votou pela cassação da presidenta em homenagem ao torturador confesso da mesma: Brilhante Ustra. Durante uma entrevista ao vivo para a Rede TV, em 2008, o deputado Bolsonaro e a deputada Maria do Rosário se desentenderam e ele afirmou em rede nacional que não estupraria a deputada porque ela não merecia. Indignada, a deputada se aproximou dele, que a empurrou e a chamou de vagabunda. Em 2013, esse mesmo deputado e atual presidenciável vociferou na tribuna contra a presidenta Dilma Rousseff por ela ter nomeado uma “sapatona”, Eleonora Menicucci, para Ministra das Mulheres. A ficha corrida do presidenciável é extensa e está disponível nas redes sociais.
O fato é que em razão de discursos cada vez mais odiosos e violentos contra as mulheres e as chamadas minorias, e pelo risco de Jair Bolsonaro ser eleito em 2018 foi que, em poucos dias, quase três milhões de mulheres do país inteiro deflagraram espontaneamente o movimento “#EleNão” na tentativa de esclarecer à população sobre os riscos de o país ser governado por alguém que flerta explicitamente com o fascismo, com a tortura, com o sexismo, com o machismo e com todo tipo de preconceito. Esse movimento não parou de ganhar adeptos, de sorte que a manifestação marcada para o próximo dia 29 de setembro, no país inteiro, já conta com apoio de amplos setores da sociedade civil organizada, incluindo alguns setores que também apoiaram o impeachment/golpe de 2016.
Desde então, pesquisas com 30% da população brasileira apoiando o fascismo de Jair Bolsonaro e a ampla maioria no Nordeste fazendo oposição ao bolsonarimo têm pautado as análises que afirmam que as mulheres e xs nordestinxs são a esperança nas eleições de 2018 ao tempo em que a grande imprensa tem tentado barrar a vitória de Fernando Haddad ao conclamar os demais presidenciáveis para uma Frente Ampla Antifascista no 1º turno em torno da candidatura de Ciro Gomes (PDT), que na última semana mereceu a capa da Revista Época como a única alternativa à polarização política do país, capaz de derrotar Jair Bolsonaro. A tese de Ciro Gomes como alternativa ao bolsonarismo não se sustenta.
Primeiro porque, segundo as pesquisas divulgadas diariamente desde a oficialização da chapa PT/PC do B, Fernando Haddad (PT) é o único candidato com forças políticas reais e crescentes de disputar o segundo turno com um projeto republicano e democrática capaz de derrotar o fascismo bolsonarista em 2018. Não se trata, contudo, de uma questão de número de votos, pois o fascismo não se derrota nas urnas, uma vez que ele é também um modo de organizar a vida dos indivíduos em sociedade. Justamente por isso, a violência fascista é uma escalada que vai sendo naturalizada à medida de sua radicalidade: no caso brasileiro, a masculinidade branca, hetoronormativa e viril têm sido mobilizada a domesticar o que surge como dissidente e fora da ordem.
E esse tipo de violência, infelizmente, não é privilégio do fascismo bolsonarista, que deve ser combativo de todas as formas. Ele é legado do escravismo e faz parte do cotidiano: na última sexta-feira (21), em entrevista à Rádio Autêntica Favela, em Belo Horizonte, Ciro Gomes afirmou: “O PCC usa essa meninada do GDE (facção do Ceará) e coloca uma metralhadora na mão dele, um fuzil pesado, e aquele menino que talvez o pau seja pequeno, acha que aquele fuzil pode ser o pau grande que ele não tem”. Esse não foi o único e provavelmente não será o último destempero do candidato durante a campanha de 2018. No entanto, boa parte da imprensa brasileira, das mulheres do #EleNão e de setores da esquerda adeptos do voto útil: compram a imagem de Ciro Gomes como o candidato da conciliação por meio de um “pacto social” que irá findar a polarização entre petistas e antipetistas, entre civilização e barbárie.
Não se trata de estabelecer relações rasas de equivalência entre Jair Bolsonaro e Ciro Gomes. Trata-se, ao contrário, de explicitar o grau de violência da sociedade brasileira e o complexo desafio do movimento feminista #EleNão. Precisamos derrotar o bolsonarismo nessas eleições, mas também precisamos derrotar na longa duração essa razão masculina de ascensão ao poder que travestida em civilização acaba mobilizando a hetoronormatividade branca e viril da bravata e do “pau na mesa” do “cabra macho” para a manutenção dos status quo no Brasil e sua intrínseca violência que é também barbárie. Por isso, nessa eleição devemos votar em candidaturas negras e feministas, e na chapa composta por um homem e uma mulher que sabem que política é também subjetividades, diversidades, parcialidades, feminismos, maternidades monoparentais, corpos, afetos.
Edição: Pedro Ribeiro Nogueira