Em 2008, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) publicou uma RDC [Resolução da Diretoria Colegiada] que propunha a revisão de registro de 14 ingredientes (princípios) ativos de agrotóxicos, por conta de potenciais efeitos nocivos sobre a saúde humana: abamectina, acefato, carbofurano, cihexatina, endossulfam, forato, fosmete, glifosato, lactofem, metamidofós, paraquat, parationa metílica, tiram, triclorfom. Na época, a revisão dos estudos científicos e a elaboração de pareceres técnicos sobre cada um dos agrotóxicos teve revelante contribuição da Fiocruz.
Foram proibidos no Brasil o carbofurano, cihexatina, endossulfam, forato, metamidofós, parationa metílica e triclorfom; e tiveram seus registros mantidos o acefato, fosmete e lactofem. O paraquate, herbicida altamente tóxico e associado a doença de Parkinson, também teve registro indicado para proibição em 2017, mas com perspectiva de uso até 2020. Ainda não foram finalizadas as reavaliações de abamectina, glifosato e tiram, o que motivou a abertura de Ação Civil Pública (ACP), por conta dos efeitos tóxicos associados a esses produtos na literatura científica.
A ACP pede prioridade na reavaliação toxicológica dos três ingredientes, pela Anvisa, e a suspensão do uso e dos registros de novos produtos que tenham esses ingredientes ativos em suas fórmulas. São muitas as evidências científicas associadas aos efeitos tóxicos desses agrotóxicos, em especial glifosato e tiram, preocupantes, em especial, sob a ótica da saúde dos trabalhadores e da população ambientalmente exposta.
Ao mesmo tempo em que a liminar de suspensão de uso desses agrotóxicos foi publicada e que o tema é debatido no Brasil, uma decisão da corte da Califórnia, EUA, condenou a uma multa de 286 milhões de dólares a empresa Monsanto, fabricante do agrotóxico mais usado no mundo, Roundup, que tem na formulação o glifosato. A condenação se deu por conta do linfoma non-Hodgkin apresentado por um jardineiro, já na fase terminal da doença, que havia trabalhado na aplicação do glifosato.
Esse tipo de câncer foi o mesmo que levou o glifosato a ser considerado “provável cancerígeno” para seres humanos (grupo 2A) pela Agência Internacional de Pesquisa em Câncer da Organização da Mundial da Saúde (IARC/WHO), no ano de 2015.
Notadamente, o glifosato é de longe o mais usado no Brasil, representando cerca de 50% de todo o consumo de agrotóxicos no país, e está fortemente associado a adoção das sementes transgênicas estimulada pelas grandes corporações do setor (Almeida et al, 2017).
Sua proibição suscitou reações alarmistas de setores ruralistas e da indústria, ao ponto de surgirem ameaças de não plantio da safra 2018/2019, caso o veneno não fosse liberado para uso; demonstrando grande dependência química no modelo produtivo e imposição da lógica comercial sobre os princípios constitucionais de defesa do meio ambiente e da saúde como bem coletivo e direito de todos, esculpidos nos art. 225 e 196 da Constituição Federal.
A derrubada abrupta, em 3/9/2018, da liminar que proibia o uso do glifosato até a conclusão da sua avaliação toxicológica, pendente há mais de dez anos, constitui-se em recuo preocupante da Justiça, e expõe de forma perigosa e desnecessária a saúde da população. Esse revés jurídico vai na contramão das tendências mais modernas da jurisprudência internacional sobre o tema, e acaba por impor ao Sistema Único de Saúde (SUS) um severo ônus. Estudo de pesquisadores da Fiocruz e IBGE mostra que, para cada dólar usado na compra de agrotóxicos, cerca de 1,28 dólar é gasto no tratamento de envenenamentos agudos (Wagner & Firpo, 2012), sem considerar ainda as intoxicações crônicas, como as desregulações endócrinas, cânceres, Alzheimer, Parkinson, problemas de desenvolvimento e de reprodução, entre outros.
Nos EUA, por exemplo, o custo econômico com envenenamento por agrotóxicos e outras doenças relacionadas gira em torno de 1 bilhão de dólares ao ano, com tratamento de cânceres e acidentes fatais e custo de internação e tratamento de intoxicados (Pimentel, 2014). Em escala global, essa cifra pode chegar a centenas de bilhões de dólares, envolvendo ainda a necessidade de recuperação de sistemas bióticos e descontaminação do solo e da água.
Por esses motivos, atores do SUS e a sociedade em geral não podem ficar de costas para o problema da contaminação generalizada promovida pelo uso de agrotóxicos no Brasil. É certo que a atividade econômica goza de necessário amparo constitucional, como previsto no art. 170 da Constituição. Porém, os princípios fundamentais que promovem a dignidade humana e a defesa do meio ambiente são condicionantes pétreos e inseparáveis de sua razão de ser, previstos no mesmo instituto legal. Assim, quando prevalecem os interesses econômicos em detrimento dos interesses e direitos de uma coletividade, especialmente nos aspectos relacionados a proteção da saúde e do meio ambiente, além de inconstitucional, como é o caso em tela, pode constituir grave violação dos Direitos Humanos, como aponta o próprio Relatório Global da Comissão de Direitos Humanos da ONU[1].
É oportuno ainda destacar o compromisso do Brasil frente ao documento Transformando o nosso mundo: a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável[2], por meio do qual representantes dos 193 Estados-membros da ONU assumiram tomar medidas concretas nos próximos anos, rumo ao desenvolvimento sustentável, traduzidos em 17 objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e 169 metas para erradicar a pobreza e promover a vida digna para todos, incluindo-se aspectos diretamente vinculados à realidade do campo e ao uso de agrotóxicos. Vale destacar a meta 2.4 do Objetivo 2, que determina a garantia de sistemas sustentáveis e manutenção dos ecossistemas e melhora progressiva da terra e do solo, visando “acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar e melhoria da nutrição e promover a agricultura sustentável”.
Em que pese o lobby das grandes corporações, a agricultura moderna aponta para uma atenção progressiva à temática da Saúde no processo produtivo agrícola, o que se reflete no aumento da procura de produtos orgânicos e no avanço de sistemas alimentares de base agroecológica, por exemplo. E é cada vez mais presente na sociedade o sentimento de que o direito à alimentação transcende o aspecto quantitativo e funda-se no acesso qualificado aos alimentos, fortemente associado ao conceito ampliado de saúde.
Portanto, o tripé Agricultura, Saúde e Sociedade, e suas interações de alta complexidade e conflitivas interna e externamente, aponta para um prognóstico altamente demandante em termos de soluções tecnológicas, científicas e sociais (aqui incluindo a judicialização da temática dos agrotóxicos), tais como: i) investimento progressivo na capacidade analítica laboratorial, em especial a de apoio forense; ii) ampliação de equipes multidisciplinares de pesquisa empírica em campo e pesquisa-ação; iii) reforço na estruturação de bancos de dados e da busca ativa de informações sobre intoxicações por agrotóxicos; iv) treinamento de profissionais para diagnóstico e registro dos casos, fortemente subnotificados, e, ainda, reforço fundamental do controle social sobre todos os aspectos que envolvem o tema.
Por fim, o momento atual requer da Fiocruz e demais instituições que dialogam com essa temática, uma aproximação estratégica e minuciosa, fomentando seus centros de estudos estratégicos e apoiando a formulação de políticas públicas e diretrizes tecnológicas em diversos níveis de articulação social, inter e intrainstitucional para o melhor caminho rumo à produção de alimentos verdadeiramente saudáveis, com promoção da saúde e proteção ambiental no campo.
* Vicente Almeida é mestre em Planejamento e Gestão Ambiental. Pesquisador independente em Impactos Ambientais, engenheiro agrônomo e graduando em Direito.
Edição: Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz