O Supremo Tribunal Federal (STF) determinou no dia 30 de agosto que a terceirização irrestrita, sancionada em lei por Michel Temer (MDB) em 2017, é lícita e constitucional, o que significa que empresas e o setor público poderão contratar intermediárias para gerir seus recursos humanos em todas as atividades. A decisão extingue uma súmula do Tribunal Superior do Trabalho (TST) que permitia apenas a terceirização da chamada atividade-meio, isto é, aquela que não é a principal do contratante. A promessa da lei é trazer segurança jurídica para empregadores e ajudar no combate ao desemprego. Os críticos, porém, alertam para o risco de precarização de postos de trabalho e demissões em massa de profissionais que atualmente são contratados diretamente. Nem uma semana depois da decisão, Porto Alegre viu, no último dia 5, a mantenedora do Hospital Mãe de Deus anunciar a demissão sumária de mais de 300 profissionais. No dia seguinte, terceirizados já estavam atuando em seus lugares.
O que o trabalhador pode esperar dessa mudança? Um dos setores em que praticamente toda a contratação é terceirizada é o de vigilantes e segurança. É quase impossível ir a um banco hoje e ver um agente uniformizado com o logotipo da dona da agência, pois, via de regra, estes profissionais são vinculados a uma terceira. O mesmo ocorre praticamente em todo o setor público, visto que esta é uma atividade que já era considerada como meio, portanto, passível de terceirização.
A direção o SindiVigilantes do Sul, que representa a categoria no RS, narra um quadro duro no tratamento dispensado aos trabalhadores. Secretário-geral suplente do sindicato, Jackson Fernandes diz que as principais reclamações dizem respeito a atrasos de salário, de vale-transporte e vale-refeição, supressão de horas, escalas absurdas e assédio moral. “É cala boca, fica quieto, tu faz isso e pronto”, afirma. Segundo ele, os problemas são sistemáticos e generalizados em todo o setor, dando para se “contar nos dedos” as empresas sérias que atuam em Porto Alegre.
Diretor de Comunicação do SindiVigilantes, Ivo Gomes aponta que os maiores problemas verificados pelo sindicato ocorrem quando as empresas terceirizadas prestam serviço para o poder público, com os problemas começando já na contratação, usualmente realizada por meio de pregão eletrônico. “O pregão é sempre por preço mais baixo. Qualquer empresa picareta existente aí no mercado, que não são poucas, tem a grande facilidade de fazer um novo CNPJ e conseguir atuar. Ou colocar um laranja. Às vezes, troca a empresa, mas tu vai ver são as mesmas pessoas que trabalhavam antes”, diz.
Uma nota técnica divulgada pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) em março de 2017, elaborado a partir de dados da Relação Anual de Informações Sociais (Rais) e na Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE), constatou que os salários nas atividades terceirizadas são, em média, 23,4% menores do que na contratação direta, que a rotatividade é duas vezes maior, as jornadas de trabalho são mais longas e há mais afastamentos por acidentes de trabalho.
Ivo afirma que o sindicato já está “cansado” de fazer ofícios para empresas, para o setor público e para os órgãos de fiscalização do trabalho sobre as más condições nas terceirizadas. Problemas que vão de falta de água potável, falta de luz, falta de aparelhos para o trabalhador esquentar alimentos ou comércio próximo para comprar comida. “O cara recebe vale-alimentação, pode comprar comida, fazer em casa e levar. Mas chega no posto e não tem condições nenhuma. Não tem fogão, geladeira. A empresa deveria cobrar do contratante”, diz Ivo. A reportagem teve acesso a uma série de ofícios encaminhados para uma prestadora de serviços terceirizados que tem diversos contratos com a Prefeitura de Porto Alegre. A pedido dos dirigentes sindicais, o nome da empresa e do órgão de atuação não serão divulgados nessa reportagem, mas pode-se ver abaixo algumas dessas reclamações.
‘Vai procurar teus direitos na Justiça’
Jackson conta que o assédio moral é um dos principais problemas no setor, com as contratantes exigindo que o vigilante se comporte como um “robô”. Ele diz que, em um grande hospital localizado em um bairro nobre da Capital, os vigilantes são proibidos de falar e dar informações aos pacientes, devendo apenas encaminhá-los para outras pessoas. Há também o problema de que qualquer saída do lugar, para ir ao banheiro, por exemplo, pode configurar abandono de posto e levar a uma demissão por justa causa. “Tem um caso de um colega que estava em um shopping de Canoas e me ligou. ‘Olha aqui, to há mais de duas horas pedindo para ir ao banheiro e o cara não vem. Acabei de me urinar todo nas calças’. Isso acontece porque tem empresas que trabalham só em cima da justa causa e o trabalhador depois vai ter que cobrar da Justiça, que é lenta”, diz.
Segundo Ivo, depois da reforma trabalhista, ficou ainda mais difícil reclamar os direitos sonegados na Justiça. Ele conta que a sala do setor jurídico do sindicato andava sempre cheia, mas o movimento reduziu muito pelas dificuldades impostas pela reforma para as contendas trabalhistas. “É menos da metade”, diz Jackson. “Existe uma intimidação sobre o trabalhador referente a essa situação, porque ele não se sente livre para buscar os seus próprios direitos”, complementa, salientando que o medo é de perder a ação e ter de pagar honorários.
Ivo diz que, nessa situação em que o trabalhador enfrenta grandes dificuldades e riscos ao entrar na Justiça, fica mais fácil para a empresa sonegar direitos. Ele destaca que, antes da reforma, a empresa contratante tinha responsabilidade por eventuais atrasos e abusos cometidos pela terceirizada, a chamada responsabilidade solidária, mas que, depois dela, isso só ocorre depois de exaurida em todas as instâncias da Justiça do Trabalho a tentativa de cobrar a terceirizada, o que pode levar muitos e muitos anos. “Essa reforma trabalhista é a reforma do patrão”.
Como há ainda o problema do desaparecimento das empresas após o término de contratos, deixando para trás a falta de pagamentos de salários, benefícios e a rescisão salarial, eles contam que, na prática, muitos trabalhadores do setor acabam se vendo forçados a assinar as chamadas “rescisões zeradas”, em que abrem mão de direitos no ato da demissão. “É para o cara poder receber o pouco de fundo que ele tem, que muitas não depositam, e conseguir dar entrada no seguro-desemprego. Para pelo menos dar um alívio”, diz Ivo. Ele destaca que, em casos de atrasos muito grandes, o próprio sindicato acaba auxiliando o trabalhador a negociar essas rescisões zeradas para que ele possa ter acesso a recursos que garantam minimamente sua sobrevivência. Ele ressalva que o sindicato tenta deixar em aberto a possibilidade de buscar os direitos sonegados na Justiça, o que também é prejudicado pelas novas regras de quitação estabelecidas pela reforma trabalhista.
Enfermagem, um setor na mira
Presidente do Sindicato dos Enfermeiros do Rio Grande do Sul (Sergs), Estevão Finger destaca que o setor de Enfermagem é um dos mais ameaçados pelo avanço da terceirizações, algo que já é uma realidade em algumas cidades, como Canoas e Rio Pardo. Ele aponta dois problemas na terceirização: a retirada de direitos dos trabalhadores e a precarização do serviço prestado à população.
Quanto ao primeiro, destaca que o que tem se verificado é a redução salarial acompanhada de aumento da jornada de trabalho, na comparação com os serviços prestados por funcionários públicos e na contratação direta no serviço privado. “Praticamente não existe plano de carreira e de salários”, diz.
Jussara* explica que, na sua experiência, durante a vigência dos contratos entre o poder público e as empresas terceirizadas, nunca presenciou atrasos de pagamentos ou de direitos. O problema ocorre quando a relação termina ou é rompida. “Quando eles rompem esse contrato, aí eles não tem dinheiro para pagar 13º, multa de 40%, fundo de garantia. Essas coisas eles não têm dinheiro para nos pagar. Esse é o nosso maior problema”.
Há seis anos atuando em terceirizadas que prestam serviços de enfermagem para o poder público da cidade de Rio Pardo, ela já está em seu terceiro empregador. Nas duas oportunidades em que houve o rompimento de contrato, os problemas listados por ela se repetiram. “Foi a mesma ladainha. Não tivemos a multa e outras coisas pagas. Tivemos que entrar via judicial para receber”, afirma, acrescentando que uma das empresas “sumiu do mapa” depois do fim do contrato com a Prefeitura.
Além disso, Estevão destaca que a avaliação do Sergs é de que a terceirização traz prejuízos para o atendimento. “Se tu trabalha no serviço público, teoricamente, tu tem uma estabilidade e cria vínculos de atendimento à população, o que propicia uma melhor qualidade de atendimento”, defende.
Outro risco, segundo ele, é o de prefeitos e gestores da saúde acabarem não abrindo mais concursos e colocando a responsabilidade toda na mão das terceirizadas. “Quando o município contrata essas empresas, muitas vezes fazem contratos com valores estratosféricos, mas de baixa fiscalização, porque não passam pela aprovação de conselhos municipais ou estaduais. Como foi o caso da Gamp [empresa que atua em Canoas acusada de irregularidades na prestação do serviço]. Nem o gestor público, nem o povo fiscalizam os contratos”, avalia.
Aumento salarial?
Outro setor que já está mergulhado na terceirização há anos é o de telefonia, seja nos serviços de telemarketing ou de manutenção e instalação de redes e cabos. Flaviano da Silva da Silveira já passou por diversas empresas desde 2004 e atualmente atua como cabista para uma prestadora de serviços para Claro e Procempa. Na sua empresa, o salário base para o profissional responsável pela instalação e manutenção de cabos metálicos, como ele, é R$ 1.220. Apesar de este ser um salário “de entrada”, acaba se tornando uma realidade duradoura, visto que promoções nas terceirizadas do setor são “uma coisa quase inexistente”. “Aumento de salário é só quando tem dissídio, e mesmo assim é muito baixo, só a inflação do ano. E só repõe o salário, porque o vale-alimentação está congelado em R$ 16,50 há anos”, diz.
Contudo, além do salário baixo, ele aponta já ter vivido e presenciado uma “sequência de erros” que dificultam a vida do trabalhador. “Nunca fiquei sabendo de colega meu que tenha recebido hora extra, apesar de fazerem muitas. Tem funcionários que disponibilizam carro e computador para tarefas do trabalho, a empresa deveria pagar uma valor x de locação a cada serviço prestado, mas isso acaba atrasando sempre”, conta. Flaviano é outro que já viu empresas desaparecerem da noite para o dia, deixando os funcionários sem receber os valores devidos.
No setor de vigilância, ainda há algumas empresas que trabalham com os chamados “orgânicos”, contratados diretamente. “Aí é melhor, o salário cai no dia 30, recebem todos os benefícios dos demais funcionários. É outra realidade”, diz Ivo.
Pode piorar
A situação ainda pode piorar mais, alerta o SindiVigilantes. É o caso das quarteirizações, que ocorrem quando empresas ganham uma licitação, mas, como não possuem efetivo e instrumentos próprios para realizar o trabalho, o repassam para outra empresa, não sem antes ficarem com uma parte do valor, o que significa que o trabalho, de fato, será prestado por um valor ainda menor do que o contratado originalmente.
Ivo diz que, para o setor de vigilância, a quarteirização já é uma realidade, bem como as jornadas intermitentes, em que o trabalhador não é contratado para trabalhar uma jornada completa semanal, apenas as horas que a empresa necessita. “Os horistas vão ganhar muito menos. Já tem escala de 5h45. Quinze minutos a menos pro cara não receber alimentação. Essa é uma das partes mais prejudiciais (da reforma). Imagina o pai de família que vai ganhar R$ 1 mil e vai ter que tirar R$ 250 só de alimentação, tendo só as misturas, arroz, feijão e coisas básicas”.
Ele diz que um colega de trabalho começou a cumprir uma jornada dessas na semana que passou. “O cara vai lá para fazer a rendição de almoço e não pode nem almoçar, porque só tem quinze minutos de intervalo. Passa o dia inteiro em pé rendendo os outros para almoçar e ele não almoça. Essa é a tendência”, afirma Ivo. “Para vaga, tem um monte. O cara diz ‘eu quero’, mas depois vai ver que está pagando para trabalhar. Se o trabalhador pedir demissão, melhor para a empresa, que se livra de pagar as multas da rescisão”.
*A enfermeira pediu para ter seu nome alterado para não ter problemas com o empregador atual
Edição: Sul 21