Não é de hoje que em períodos eleitorais o humor do Mercado se altera e começa a dança dos índices, que refletem variações de preços de ações, da cotação de moedas estrangeiras (taxas de câmbio), com impactos mais ou menos relevantes na vida de todos nós. Os candidatos começam a sofrer o constrangimento de dar sinais positivos ao Mercado, sofrem a pressão dos meios de comunicação e chegam, inclusive, a levar corretivos de jornalistas especializados.
A primeira pergunta que devemos fazer é quem é o Mercado, este ente aparentemente sem rosto, impessoal, que tem a autoridade de dizer o que deve ser um bom governo. A segunda pergunta é como este ser ganhou tamanha autoridade. E por último precisamos verificar o quanto devemos levar em conta esta autoridade.
Vamos à primeira resposta. O Mercado certamente não é o mercado, aquele lugar parecido com uma feira onde as pessoas compram tomates mais barato no período da safra e compram morangos mais caros na entressafra. Numa feira de bairro, com venda direta do produtor, quem determina o preço é grosso modo a oferta e a procura. Conta pouco a cara do freguês, mesmo que ele seja boa praça, que seja um freguês querido. Conta pouco o desejo do produtor em cobrar mais caro se há uma boa safra e a quantidade de fregueses não tenha aumentado muito. Não, o Mercado de que falam nossos cronistas das grandes redes de televisão não é a feira de produtores diretos ao consumidor. O Mercado é feito de gente graúda, que negocia de tudo, desde a cotação do dólar para daqui há um ano, ações na bolsa de valores, títulos da dívida pública e mesmo coisas bizarras como o resultado de partidas de futebol. O Mercado é composto por grandes volumes de recursos centralizados em algumas instituições, que administram estes recursos e ganham muito de forma especulativa. Conta aqui a velocidade da negociação, a liquidez dos ativos e o clima dos negócios. O investidor, ou apostador, são instituições financeiras e as fortunas pessoais que elas administram, bem como as grandes corporações transnacionais que investem suas sobras de caixa.
O investidor pode ser nacional ou estrangeiro e aí entramos na segunda resposta. O poder do Mercado é o resultado de um conjunto de permissões que os governos foram dando aos donos da riqueza para que estes pudessem investir dentro ou fora do país e, para usar uma linguagem do Mercado, pudessem diversificar seus investimentos. Parece simples, mas não é. A liberdade de investimento sempre foi um problema público e não simplesmente uma questão de ordem privada. Não é difícil de entender que fundos de pensão tem uma grande responsabilidade sobre o universo de pessoas que dependem destes recursos para viver. Companhias de energia tem uma enorme responsabilidade em manter a oferta de um produto que afeta a vida das firmas e dos consumidores. Assim, se as companhias de energia fazem investimentos financeiros temerários, podem afetar a vida das pessoas. Governos têm a responsabilidade de ofertar dinheiro, de tal maneira que as pessoas possam ter a expectativa que o valor deste dinheiro não terá alterações negativas num horizonte razoável. Portanto, regular o que pode ou não em termos de exposição ao risco é tarefa pública de grande relevância. O que se viu nos últimos 50 anos é que sob a liderança dos EUA, ao Mercado foi sendo permitido tudo, ou quase tudo. A ideia por trás deste processo era de que isto permitiria uma maior diversificação de riscos, uma melhor alocação de recursos e a liberação de grandes somas de poupanças para investimentos privados e financiamento público. O resultado foi que o Mercado expandiu tremendamente, quebrando fronteiras e aumentando a velocidade de circulação dos ativos financeiros, com a crescente perda de capacidade de supervisão dos governos. Resultado adicional: aumento do poder do Mercado, diminuição do poder dos governos.
Isto é ruim? Para o Mercado não, para a sociedade parece que sim. O Mercado aumentou a incerteza, a volatilidade dos preços dos ativos financeiros e de preços-chave macroeconômicos como juros e câmbio. A promessa de diversificação de riscos teve um efeito contrário, que foi o encurtamento do prazo da relação investimento/retorno. Isto criou um comportamento mais especulativo dos detentores da riqueza líquida (do dinheiro, das poupanças), mais sujeito à manipulação, aos surtos maníacos de investimento, às situações de pânico e de crise. O Mercado vampirizou os mercados, capturou renda das sociedades e liquidou com nações por meio de ataques especulativos a moedas e fugaz de capital. Esta sede dependente de retornos máximos em prazos exíguos tem sido um enorme desafio para as democracias e para as políticas públicas.
Com isto chegamos ao terceiro questionamento deste artigo: quanto devemos dar de atenção ao Mercado.
A resposta é difícil, pois é como se vivêssemos sobre um campo minado e não se corre num campo minado só porque se acha que do outro lado há o paraíso. No Brasil, a ascensão de Haddad e a possibilidade de uma vitória da coalizão que ele representa acende a luz de alerta e abre as portas para a dança dos vampiros, daqueles que tem a varinha de condão da manipulação dos preços. O dólar atinge um patamar de R$ 4,15 e as chantagens aparecem com alertas nos meios de comunicação sobre uma eventual desgraça que representaria o avanço do candidato de Lula. O problema maior no tempo em que vivemos é que os chamados formadores de opinião são, eles mesmos, parte do Mercado. O grupo Folha de São Paulo, as organizações Globo e outros menores, mas não menos vorazes, disputam preços, estão mergulhados no jogo de perde e ganha dos mercados. Por um lado, as forças alinhadas com o projeto progressista devem aprender com o passado, onde aceitar o jogo do Mercado significa perder a liderança moral e intelectual de um projeto de transformação, afastando e desacreditando o povo de seus dirigentes. Não reconhecer o poder do Mercado, nas atuais circunstâncias, é abandonar qualquer possibilidade de enfrentá-lo. Será a arte de administrar as pressões e não perder as oportunidades de transformação, quando aparecerem, que teremos a possibilidade de libertar nossa sociedade da voracidade dos vampiros. Uma das oportunidades é agora, não queimando etapas, ganhar as eleições de outubro, explicando e explicitando quem é o Mercado, mas também conversando com aqueles que vivem nos mercados.
*Jaime Coelho é Professor de Economia e Relações Internacionais da UFSC
Edição: Heloisa de Sousa