Dramaturgo, diretor e escritor faleceu nesta sexta-feira, em Minas Gerais
O teatro brasileiro se despede de uma de suas mais expressivas figuras. Aos 84 anos, faleceu o diretor, dramaturgo, ator e escritor João das Neves. Rodeado de amigos e familiares, ele partiu nesta sexta-feira (24) em sua casa, em Lagoa Santa, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. O velório acontece a partir das 12 horas, no crematório Parque da Colina. Ele deixa um vasto legado na arte brasileira, com escritos, peças de teatro e uma longa caminhada de educação popular e lutas sociais.
Um pouco da trajetória
O primeiro contato com o palco se deu ainda na adolescência, há mais de 60 anos, em sua cidade natal, o Rio de Janeiro. Depois, ele se formaria ator e diretor, na década de 50, pela Fundação Brasileira de Teatro (FBT). Desde cedo, João das Neves fez do teatro um foco de resistência.
Em 1960, fundou Os Duendes, grupo perseguido pelo governo de Carlos Lacerda. Logo após o golpe militar, ajudou a criar e dirigir o Grupo Opinião, articulando protesto, estudos e difusão da dramaturgia nacional. Por ele passaram Zé Kéti, João do Vale, Maria Bethânia, Paulo Autran, Nara Leão e os diretores Augusto Boal e Flávio Rangel, entre outros. Nessa época, João dirigiu “O Ultimo Carro”, peça desenvolvida em torno do público que, deslocado ao centro da cena, era posto em ação. O espetáculo foi visto por mais de 200 mil pessoas.
Em 1980, João das Neves mudou-se para o Acre, onde desenvolveu trabalhos comprometidos com as causas indígenas e ambientais. São desse período, entre outras, as montagens “Tributo a Chico Mendes” (1988) e a peça não encenada “Yuraiá – o rio do nosso corpo” (1990), fundamentada na pesquisa que fez sobre a Nação Kaxinawá.
“Ele descobriu nessa convivência do Acre um trabalho muito próximo aos indígenas. Ele tinha uma sensibilidade com os povos que são outro modelo de civilização, outro olhar do mundo, e tentava traduzir isso no teatro e fazer uma confluência das lutas urbanas com as lutas desses povos”, comenta a atriz Tainá Rosa, do movimento Muitxs.
Nos anos 90, João das Neves foi viver em Minas Gerais, onde, ao lado de sua companheira, a cantora Titane, trabalhou em vários espetáculos, entre os quais “Titane e o Campo das Vertentes” (2006), “Madade Satã” (2015) e, mais recentemente, “Lazarillo de Tormes” (2016), que marcou seu retorno ao palco como ator, após 25 anos.
Em seu aniversário de 84 anos, em janeiro, lançou seu livro “Diálogo com Emily Dickinson”, uma interlocução lírica em haikais, aforismos e sonetos com a poetisa feminista do século XIX, cuja obra foi quase integralmente conhecida somente após a morte, em 1886.
Arte e política
“O João conseguia fazer uma relação em que a arte não era só instrumento para a política, mas elas se fundiam de forma perfeita. A arte podia cumprir um papel emancipador, libertador. Foi uma das pessoas mais lúcidas que eu conheci, de fazer essa relação sem perder a capacidade criadora”, recorda Guê Oliveira, militante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
João das Neves ajudou a construir o Partido Comunista e o Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes UNE. Recentemente, manteve uma profícua colaboração com movimentos populares. Participou, em 2016, da ocupação da Fundação Nacional de Artes (Funarte) em BH, em protesto contra a extinção do Ministério da Cultura pelo governo golpista de Temer (MDB).
“A resposta imediata das pessoas da cultura foi importante para dizer que estamos alertas. A própria ocupação em si foi uma experiência boa, se vivia uma horizontalidade de decisões. Tudo era decidido com todo mundo”, disse, na época, em entrevista ao Brasil de Fato.
Educador popular
Em abril, João das Neves e Titane contribuíram com a UNE e o MST em oficinas das quais surgiram materiais que seriam usados na divulgação do Congresso do Povo. Dessa experiência brotaram intervenções do Levante Popular da Juventude na Marcha para Brasília, realizada na primeira quinzena de agosto, pelo registro da candidatura de Lula à Presidência.
“O processo foi fenomenal, muito intenso. O João era atual, conseguia ser a história desse teatro de resistência, mas, ainda assim, ser muito ativo na produção da história. Ele e a Titane traziam a diversidade da luta, da arte e da resistência. Não tinha jargões, mas como o congado, a arte do Jequitinhonha, os povos indígenas são resistência hoje, vivos, ativos”, recorda a estudante Ana Júlia Guedes Bonifácio, do Levante Popular da Juventude.
Edição: Joana Tavares