Resistência

Argentina se despede de uma das fundadoras das Avós da Praça de Maio

“Ainda que o mundo termine amanhã, eu plantaria minha macieira”, nos relembrou Chicha Mariani pouco antes de sua morte

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Chicha Mariani buscou por 42 anos sua neta Clara Anahí, desaparecida pelo último regime militar argentino
Chicha Mariani buscou por 42 anos sua neta Clara Anahí, desaparecida pelo último regime militar argentino - Reprodução

Ela se foi sem encontrar Clara Anahí. Não pode cumprir o sonho que a acompanhou em cada segundo de seus últimos 42 anos. Mas deixa um vendaval de ensinamentos, um manual de coerência e tenacidade que a transformaram em um dos principais ícones da luta por Memória, Verdade e Justiça na Argentina. 

Chicha Mariani, fundadora das Avós da Praça de Maio – organização de direitos humanos que busca pelas crianças que foram “desaparecidas” durante a última ditadura militar argentina –, faleceu aos 94 anos, nessa segunda-feira (20).

Dias atrás, Chicha nos recebeu em sua casa, e a palavra esperança foi a mais repetida ao longo da conversa. “Nunca se pode baixar os braços”, sentenciou, com um otimismo à prova de balas, desilusões e dores físicas e mentais.

Chicha falava de forma clara, pausada, e pedia perdão quando a memória colocava obstáculos ao seu relato. Aproximava-se a data de um novo aniversário de Clara Anahí (que foi no último 12 de agosto) e se impunha a pergunta sobre as sensações que a atravessavam: “Às vezes sinto um grande desalento, porque sempre penso: E se eu tivesse feito isso? E se falhei fazendo outra coisa? Poderia ter feito mais? Sempre se quer fazer mais. Sai pela mente, pelo coração, o que não se pode fazer. São épocas muito difíceis, a esta altura quando você sabe que não pode fazer tanto como antes. Mas, da mesma forma, se pode fazer, por isso luto a partir do meu lugar. Nunca perdemos a esperança. A esperança sempre existe”.

Clara Anahí Mariani Teruggi tinha três meses quando foi sequestrada e desaparecida, em 24 de novembro de 1976, durante uma operação que foi supervisionada pessoalmente por Miguel Ángel Etchecolatz, então diretor de investigações da Polícia de Buenos Aires.

Nesse dia, o descomunal emprego de forças militares e policiais da ditadura irrompeu na casa de Diana Teruggi e Daniel Mariani, na Rua 30, entre as ruas 55 e 56, da cidade de La Plata. Ali também funcionava uma imprensa clandestina do jornal Evita Montonera. Foram assassinados Diana e outros quatro militantes. Diana foi atingida pelas costas e caiu cobrindo com seu corpo sua pequena filha, Clara Anahí. A casa hoje é um Lugar de Memória e conserva as pegadas da ferocidade repressiva.

María Isabel “Chicha” Chorobik de Mariani começou nesse dia a eterna busca por sua neta. Ela foi uma das fundadoras e a segunda presidenta das Avós da Praça de Maio. Em 1989, saiu da organização e criou a Associação Clara Anahí.

Página 12: Como você fez para não baixar os braços depois de tantos anos sem respostas?

Chicha Mariani: As feridas que se formaram, os sofrimentos, às vezes as alegrias também, te vão gerando uma personalidade muito especial. Olha, às vezes escondo a cabeça debaixo do travesseiro e choro aí. Mas tudo o que desperta a busca, a sensação de injustiça que uma pessoa teve que sofrer, te dá asas que nenhuma outra coisa pode te dar. É como um motor que se leva junto com tudo o que se perdeu. O que te dá o amor, o amor que sai do lugar mais profundo. A força que se tem é o amor pelos nossos e pelos outros. 

Que aprendizados ou ensinamentos de vida você gostaria de transmitir?

Que nunca se deve baixar os braços. E estar sempre alerta, jamais permitir que um direito humano seja violado, porque atrás vêm outros. Educar as crianças, fazê-las participantes dos problemas. Não deixar que a inércia ou o cansaço ou a decepção nos alcance. E não parar nunca, essa tem sido uma premissa na minha vida. Sempre se aprende, não se pode fechar nunca nenhum caminho, é preciso fazer tudo o que seja possível, até o final.

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A cada tanto, de Chica escapa um “onde está Clara Anahí?”, a pergunta onipresente em seus dias e suas noites. “Em cada segundo”, esclarece. E reafirma a ilusão que nunca abandonou: “Eu sempre penso que vou encontrá-la, a busco tanto e de tantas maneiras que tenho a esperança… Sim, eu acredito que vou encontrá-la”.

Algum dia Clara Anahí vai aparecer. E, desde algum lado, ela se somará ao sorriso dessa enorme mulher que fez da esperança uma bandeira, e que, dias antes de empreender uma viagem eterna, nos presenteou como despedida aquela frase de Martin Luther King que levou como lema de vida: “Ainda que o mundo termine amanhã, eu plantaria minha macieira”.

Edição: Página 12 | Tradução: Vivian Neves Fernandes