Ela se foi sem encontrar Clara Anahí. Não pode cumprir o sonho que a acompanhou em cada segundo de seus últimos 42 anos. Mas deixa um vendaval de ensinamentos, um manual de coerência e tenacidade que a transformaram em um dos principais ícones da luta por Memória, Verdade e Justiça na Argentina.
Chicha Mariani, fundadora das Avós da Praça de Maio – organização de direitos humanos que busca pelas crianças que foram “desaparecidas” durante a última ditadura militar argentina –, faleceu aos 94 anos, nessa segunda-feira (20).
Dias atrás, Chicha nos recebeu em sua casa, e a palavra esperança foi a mais repetida ao longo da conversa. “Nunca se pode baixar os braços”, sentenciou, com um otimismo à prova de balas, desilusões e dores físicas e mentais.
Chicha falava de forma clara, pausada, e pedia perdão quando a memória colocava obstáculos ao seu relato. Aproximava-se a data de um novo aniversário de Clara Anahí (que foi no último 12 de agosto) e se impunha a pergunta sobre as sensações que a atravessavam: “Às vezes sinto um grande desalento, porque sempre penso: E se eu tivesse feito isso? E se falhei fazendo outra coisa? Poderia ter feito mais? Sempre se quer fazer mais. Sai pela mente, pelo coração, o que não se pode fazer. São épocas muito difíceis, a esta altura quando você sabe que não pode fazer tanto como antes. Mas, da mesma forma, se pode fazer, por isso luto a partir do meu lugar. Nunca perdemos a esperança. A esperança sempre existe”.
Clara Anahí Mariani Teruggi tinha três meses quando foi sequestrada e desaparecida, em 24 de novembro de 1976, durante uma operação que foi supervisionada pessoalmente por Miguel Ángel Etchecolatz, então diretor de investigações da Polícia de Buenos Aires.
Nesse dia, o descomunal emprego de forças militares e policiais da ditadura irrompeu na casa de Diana Teruggi e Daniel Mariani, na Rua 30, entre as ruas 55 e 56, da cidade de La Plata. Ali também funcionava uma imprensa clandestina do jornal Evita Montonera. Foram assassinados Diana e outros quatro militantes. Diana foi atingida pelas costas e caiu cobrindo com seu corpo sua pequena filha, Clara Anahí. A casa hoje é um Lugar de Memória e conserva as pegadas da ferocidade repressiva.
María Isabel “Chicha” Chorobik de Mariani começou nesse dia a eterna busca por sua neta. Ela foi uma das fundadoras e a segunda presidenta das Avós da Praça de Maio. Em 1989, saiu da organização e criou a Associação Clara Anahí.
Página 12: Como você fez para não baixar os braços depois de tantos anos sem respostas?
Chicha Mariani: As feridas que se formaram, os sofrimentos, às vezes as alegrias também, te vão gerando uma personalidade muito especial. Olha, às vezes escondo a cabeça debaixo do travesseiro e choro aí. Mas tudo o que desperta a busca, a sensação de injustiça que uma pessoa teve que sofrer, te dá asas que nenhuma outra coisa pode te dar. É como um motor que se leva junto com tudo o que se perdeu. O que te dá o amor, o amor que sai do lugar mais profundo. A força que se tem é o amor pelos nossos e pelos outros.
Que aprendizados ou ensinamentos de vida você gostaria de transmitir?
Que nunca se deve baixar os braços. E estar sempre alerta, jamais permitir que um direito humano seja violado, porque atrás vêm outros. Educar as crianças, fazê-las participantes dos problemas. Não deixar que a inércia ou o cansaço ou a decepção nos alcance. E não parar nunca, essa tem sido uma premissa na minha vida. Sempre se aprende, não se pode fechar nunca nenhum caminho, é preciso fazer tudo o que seja possível, até o final.
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A cada tanto, de Chica escapa um “onde está Clara Anahí?”, a pergunta onipresente em seus dias e suas noites. “Em cada segundo”, esclarece. E reafirma a ilusão que nunca abandonou: “Eu sempre penso que vou encontrá-la, a busco tanto e de tantas maneiras que tenho a esperança… Sim, eu acredito que vou encontrá-la”.
Algum dia Clara Anahí vai aparecer. E, desde algum lado, ela se somará ao sorriso dessa enorme mulher que fez da esperança uma bandeira, e que, dias antes de empreender uma viagem eterna, nos presenteou como despedida aquela frase de Martin Luther King que levou como lema de vida: “Ainda que o mundo termine amanhã, eu plantaria minha macieira”.
Edição: Página 12 | Tradução: Vivian Neves Fernandes