Têm início nesta sexta-feira (3) as audiências públicas no Supremo Tribunal Federal (STF) que pretendem analisar o tema da descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação.
As audiências são parte do processo de julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 442, protocolada pelo Psol em 2017, que pede a exclusão dos artigos 124 e 126 do Código Penal, referentes ao crime de interrupção da gravidez tanto para as mulheres que abortam quanto para quem ajuda no processo.
O momento para o debate é propício. No mês de junho, a Câmara dos Deputados na Argentina votou a favor da descriminalização do aborto até a 14ª semana de gestação, após um movimento que mobilizou centenas de milhares de argentinas. A votação no Senado argentino acontecerá na próximo quarta-feira, dia 8 de agosto. O processo vem estimulando também o posicionamento dos candidatos à presidência no Brasil.
As audiências foram marcadas pela relatora do processo, a ministra Rosa Weber. Centenas de pessoas e organizações se inscreveram para exporem nas audiências, e 44 foram escolhidas, tendo 20 minutos cada para argumentação sobre seu posicionamento.
Entre os principais nomes que farão exposição em defesa do aborto estão representantes do Ministério da Saúde, da Fundação Oswaldo Cruz, do grupo religioso Católicas pelo Direito de Decidir, da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, da organização Católicas pelo Direito de Decidir e do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH).
Para a presidenta do CNDH, Fabiana Severo, a iniciativa do STF é "muito positiva", pois levará a um debate aprofundado sobre o tema, que pode repercutir na forma como ele é tratado nos debates das eleições gerais deste ano.
"A expectativa é de que seja feito um debate aprofundado com a complexidade que o tema requer. Não se trata de uma discussão moral, mas jurídica com dados empíricos. Muitos candidatos não querem tratar desse debate. Alguns enfrentam e outros não, para não se expor. A gente precisa avançar democraticamente no debate político brasileiro, no sentido de tratar de temas de forma mais transparente, mais aberta. O eleitorado brasileiro precisa ter a oportunidade de conhecer melhor os candidatos. No entanto, na temática específica do aborto, já foram sucessivas eleições em que não era possível nem saber a opinião dos candidatos sobre as questões específicas porque era um não assunto, tamanho o melindre para tratar a temática", afirmou.
De acordo com Severo, a aprovação da ADPF pela maioria dos ministros seria um primeiro passo para que o aborto seja considerado uma questão de saúde pública no país. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), 97% dos abortos clandestinos no mundo ocorrem em países em desenvolvimento. Já no Brasil, todos os anos são realizados um milhão de abortos clandestinos, e a cada dois dias uma mulher morre vítima de aborto inseguro.
"A ADPF diz respeito, especificamente, à descriminalização até a 12ª semana, mas esse é o primeiro passo, porque políticas de saúde pública de saúde sexual e reprodutiva não são feitas porque a conduta é incriminada. Então tudo é feito na clandestinidade, e ela movimenta uma máfia, seja de medicamentos ou médicos. Então a descriminalização é um passo absolutamente necessário para que essa questão entre na agenda da saúde pública do Estado brasileiro", afirmou.
Hoje, o Brasil permite o aborto em apenas três situações: quando a gravidez apresenta risco de morte materna; em caso de gravidez decorrente de estupro; e, por fim, quando o feto é anencéfalo. A última vez que o STF realizou uma audiência pública sobre o tema foi em 2011, referente ao tema do aborto para casos de fetos anencéfalos. Alguns meses depois, a maioria ampla do plenário decidiu por descriminalizar o aborto nessas situações. Entre as pessoas presentes na audiência na época, estava a coordenadora do Católicas pelo Direito de Decidir, Maria José Rosado. Em entrevista ao Brasil de Fato, ela afirmou que está otimista com os resultados da votação deste tema.
"A minha expectativa é extremamente positiva. A Irlanda já legalizou neste ano, e a Argentina está no caminho da legalização nesse ano. O que a gente tem são mais países entendendo que o que está em jogo nessa questão é a vida das mulheres. Então em defesa da vida das mulheres nós nos pronunciamos favoravelmente a uma legalização, para que elas, em sã consciência, possam decidir. Como já o fazem. Elas decidem, mas as que decidem interromper o fazem arriscando suas vidas", afirmou.
A Pesquisa Nacional do Aborto (PNA) realizada em 2016 pelo Instituto Anis mostrou que entre o perfil das mulheres que abortam, 56% são de católicas e 25% de protestantes ou evangélicas. Além disso, 67% já tinha filhos. A mesma pesquisa mostrou que o índice de aborto provocado por mulheres negras é 3,5% maior do que o de mulheres brancas. Já a chance de mulheres negras morrerem em decorrência de abortos clandestinos é 2,5 vezes maior. Para Maria José, os dados ajudam a desmistificar a imagem da mulher que aborta no país.
"Nenhuma mulher aborta levianamente, e sim depois de muito pensar, e muitas vezes com sofrimento. Queremos que essas mulheres possam, diante da lei, realizar aquilo que sua consciência diz. No catolicismo existe um preceito muito antigo que diz que diante de uma decisão difícil de se tomar, o que rege a decisão não é opinião, nem doutrina, mas a própria consciência", afirmou.
Segundo Fabiana Severo, entre os argumentos que o CNDH levará para a audiência está as garantias constitucionais de igualdade e liberdade. Além disso, o conselho pretende destacar as obrigações internacionais assumidas pelo Brasil em tratados de direitos humanos que reconhecem os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, inclusive a interrupção voluntária da gravidez,
"O Conselho Nacional de Direitos Humanos apresentou em seu memoriais quatro linhas de argumentação, focadas no direito à liberdade, à dignidade humana, à liberdade da escolha, à vida da mulher. Fundados também no princípio da não discriminação, na igualdade de mulheres de todas as classes sociais, na desproporcionalidade da tipificação penal da incriminação da interrupção da gravidez como forma de prevenir o aborto. A incriminação não tem nenhum efeito na prevenção, pelo contrário, acaba evitando que o tema seja tratado em termos de políticas públicas e planejamento familiar", destacou.
Mulheres de todas as regiões do país irão acompanhar o processo no STF, participando do Festival Pela Vida das Mulheres, que acontece a partir de sexta (3) e terá fim na segunda-feira (6), segundo e último dia das audiências. A atividade está sendo organizada por cerca de 200 organizações feministas e entidades que atuam na defesa dos direitos humanos.
Confira a programação completa das audiências.
Edição: Diego Sartorato