- Você sabe um telefonema que você poderia dar que me ajudaria na condução lá. Não sei como é sua relação com ele, mas ponderando. Enfim, ao final dizendo que me acompanhe lá, que era importante. Era o Flexa, viu? - diz Aécio.
- O Flexa. Tá bom, eu falo com ele - responde Gilmar.
O diálogo entre o senador Aécio Neves (PSDB/MG) e o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes ocorreu em maio de 2017 e causou forte constrangimento na maior corte do país. Neves pedia ajuda ao amigo juiz para usar o seu poder de influência dentro do partido para convencer o senador paraense Flexa Ribeiro (PSDB/PA) a apoiá-lo no projeto de lei sobre o abuso de autoridade. A gravação, feita pela Polícia Federal, foi autorizada pelo STF no âmbito da Operação Patmos.
Para o professor Álvaro de Azevedo Gonzaga, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), especialista em filosofia do direito, esse tipo de atuação política de magistrados do STF coloca em questão o próprio caráter da máxima corte do país.
“Essa conversa do Aécio com o Gilmar Mendes foi uma conversa de amizade ou de política. Sendo de amizade, aplica o [artigo] 254, inciso 1º. Sendo de política, a gente então precisa discutir a própria estrutura e estratégia do STF. O STF é um órgão político ou jurídico? Porque se o STF for um órgão político, aí não há problema, ele se assume como tal. Agora, se ele se declara como um órgão jurídico, há problema”, disse Álvaro de Azevedo Gonzaga.
Já William Santos, presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil de Minas Gerais (OAB/MG) acredita que no Judiciário, poder que não passa pelo crivo popular, não há espaço para atuação política. “O papel do Poder Judiciário é julgar, e não fazer política. Se quiser fazer política, o sujeito tem que se candidatar e ter um cargo para fazer”.
A relação íntima de Mendes com políticos tucanos não é novidade e poderia explicar a polêmica decisão, tomada pelo magistrado na última sexta-feira (29), de arquivar o inquérito que investigava a participação do senador Aécio Neves no esquema de corrupção na central elétrica de Furnas, quando era governador do estado de Minas Gerais. A Procuradoria-Geral da República (PGR) havia solicitado o envio do caso para a primeira instância, atendendo ao novo entendimento do STF que limita o foro por prerrogativa de função a crimes cometidos durante o mandato atual. Mas o ministro Gilmar Mendes, contrariando a solicitação da PGR, decidiu pelo arquivamento do caso.
O deputado estadual mineiro Rogério Correa (PT) acompanhou o caso pela Assembleia Legislativa do Estado, e vê desvio de função na decisão do magistrado, que vai no sentido de livrar o senador de ser julgado pela primeira instância.
“Quando esse caso foi aberto na Procuradoria da República, a procuradora Andreia Baião terminou o procedimento denunciando o Dimas Toledo [operador do PSDB] e todo o esquemão que ocorreu em Furnas. Isso foi parar nas mãos do Gurgel [ex-procurador da República], do Janot [ex-procurador da República], inclusive eu mesmo fiz a entrega junto a outros deputados. Eles foram escamoteando e arquivando até chegar a denúncia do Delcídio e do doleiro; e dessa forma obrigados a abrir novamente o processo. Agora o Gilmar, de forma escandalosa, arquiva sem enviar para a primeira instância. E aqui [em Minas Gerais], o Ministério Público tem várias provas sobre isso. Então, [o Gilmar] não enviou para aqui para livrar o Aécio”, disse Correa.
A relação entre Gilmar e Aécio poderia, segundo o Código de Processo Penal, gerar o impedimento do magistrado julgar processos relacionados ao senador. Segundo o artigo 254, inciso 1º da norma, um juiz deve ser declarado suspeito para julgar uma ação sempre e quando for “amigo íntimo ou inimigo capital de qualquer das partes”.
“Eu ainda não entendi porque não foi pedida a suspeição, porque ele mesmo poderia ter feito de ofício, até para que a ação andasse com a tranquilidade”, disse Santos, ao esclarecer que o processo ainda não transitou em julgado, ou seja, ainda cabe recurso da decisão do ministro Gilmar Mendes à Segunda Turma do STF ou até mesmo ao plenário da corte, o que só deve ocorrer depois do recesso do Judiciário, em agosto.
O esquema de Furnas
Em 2006, a revista Carta Capital denunciou um esquema de corrupção e lavagem de dinheiro ocorrido nos anos 2000 na central elétrica de Furnas, e que envolveu aproximadamente 150 pessoas, entre políticos, empresários e magistrados, como os tucanos, Aécio Neves, José Serra e Geraldo Alckmin e o emedebista Eduardo Cunha.
As revelações da revista foram mais recentemente (em 2012) corroboradas pelas delações premiadas do doleiro Alberto Youssef e do senador cassado Delcídio do Amaral. Segundo as informações prestadas ao Ministério Público Federal pelos delatores, o desvio de recursos em Furnas teria ocorrido em contratos de prestação de serviço, tendo chegado aos R$ 54,9 milhões, usados supostamente para financiar campanhas eleitorais.
Segundo Correa, os desvios na companhia elétrica serviram, entre outras coisas, para manter a hegemonia do PSDB em Minas Gerais por mais de duas décadas, interrompida somente nas eleições de 2014, com a eleição do primeiro governador do PT no estado.
“Foram milhões e milhões de Furnas, tanto para a campanha em Minas como a campanha nacional do PSDB, como demonstra a chamada lista de Furnas que, aliás, foi entregue a original para a Polícia Federal e eles fizeram a perícia e a consideraram verdadeira”, afirmou Correa.
Dois pesos e duas medidas
O deputado do PT reclama ainda da parcialidade do Judiciário, demonstrada nas inúmeras absolvições e arquivamentos de processos relacionados ao PSDB e outros partidos da direita e as condenações sem provas de políticos da esquerda, como é o caso do ex-presidente Lula, que cumpre pena desde o dia 7 de abril em Curitiba, em um processo considerado controverso do ponto de vista jurídico.
“Isso coloca uma contradição que o Judiciário, o STF tem hoje, que é manter a prisão do Lula e simplesmente se negar a investigar qualquer coisa relacionada ao PSDB, e principalmente ao Aécio Neves”, reclamou.
A reclamação é compartilhada pelo representante da OAB. “Essa agilidade, por exemplo, no caso do Aécio, para mandar arquivar, tem muito advogado criminalista querendo isso. Até para atender um anseio dos assistidos por esses advogados. Então há um contrassenso nisso tudo. A velocidade que se imprime a todo processo ou não para, numa canetada, de ofício, mandar arquivar, mesmo contrariando um parecer do Ministério Público. E aí eu acho que o Ministério Público e a PGR deveria ficar atento e entrar com os recursos próprios”, disse William Santos, presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil de Minas Gerais.
A reportagem tentou entrar em contato via telefone com a assessoria do STF mas, devido ao recesso do Judiciário, não obteve sucesso. Uma solicitação de posicionamento foi encaminhada via correio eletrônico e, caso haja resposta, será publicada pelo Brasil de Fato. O senador Aécio Neves e o PSDB também foram contatados mas não enviaram a resposta até o fechamento da reportagem.
Edição: Juca Guimarães