Reforma psiquiátrica e o SUS democratizaram o tratamento de transtornos em serviços gerais de atendimento
Dando continuidade à série sobre a falta que o Sistema Único de Saúde pode fazer, o Repórter SUS aborda esta semana os avanços obtidos na saúde mental, ao longo dessas três décadas.
Paulo Amarante, pesquisador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), explica como os transtornos psiquiátricos e também aqueles ligados ao uso de álcool e outras drogas passaram a ser atendidos pela saúde pública, após a reforma psiquiátrica e criação do SUS.
Democratização
O processo da reforma psiquiátrica, como chamamos, ou conjunto de transformações no grupo da Saúde Mental/Atenção Psicossocial, tem início no mesmo período que a Reforma Sanitária.
A ideia da defesa da vida que o SUS representou quando foi escrito, o documento original que deu origem ao SUS, chamava à questão democrática na área da saúde. A participação, a ideia de que saúde é democracia, saúde é cidadania, é retirar a pessoa [das condições] do não-sujeito, não-cidadão, para [a condição de] um protagonismo. Essa foi a grande contribuição da reforma psiquiátrica ao SUS.
A ideia de construir um sistema democrático, participativo, aberto. A transformação do modelo assistencial, e predominantemente asilar, hospitalar, para um modelo predominantemente aberto, participativo, foi o grande sinal de avanço.
Isolamento
Isso começou a mudar, já falando no governo anterior, com as comunidades terapêuticas, que é uma modalidade que hoje representa uma fralde.
Originalmente, as comunidades terapêuticas eram dispositivos de transformação institucional importantes. Tem um significado histórico para o campo da saúde mental, no processo de desconstrução do modelo manicomial.
Porém, começou a ser questionado porque exatamente ao contrário do que as comunidades terapêuticas inicialmente propunham esses locais acabaram sendo fechados, de isolamento, segregação, de violência, de internação compulsória e falta de direitos.
Após as mudanças políticas, com o golpe parlamentar que ocorreu, nós passamos a ter uma proliferação das comunidades terapêuticas.
Relatório indica tortura
O relatório, lançado agora [18 de junho] pelo Ministério Público Federal, Procuradoria Geral de Defesa do Direito do Cidadão, Conselho Federal de Psicologia e Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura demonstraram o quanto esses locais são de extrema violência.
Pessoas que são recolhidas dentro de casa, no trabalho, das maneiras mais violentas até a punição pelo trabalho, trabalho escravo, [submetidas a] situações variadas de desrespeito aos direitos humanos. Imposição de formas de religiosidade, espiritualidade, suspensão de alimentação, como forma de punição, e tortura.
Modelo do mercado
No campo da saúde mental, no geral, está crescendo essa tendência asilar. Isso representa um grande mercado, seja das comunidades terapêuticas, seja dos hospitais psiquiátricos, a população perde, porque perde direito à possibilidade de um cuidado, do acolhimento, de um tratamento de fato. São pessoas que necessitam, por um período de crise, [em decorrência] de uma situação mais grave na vida, de um acompanhamento, de uma orientação, de um tratamento.
Esse modelo privilegiando o mercado, cada vez mais se centra na segregação, na internação de longo prazo, no isolamento.
No imaginário popular, a ideia da internação é eficaz porque retira a pessoa daquele momento mais agudo de crise. Então, as pessoas ao longo da história aprenderam que isso era o tratamento. E fomos demonstrando, ao longo dos anos, que não, que as pessoas nesses locais não são tratadas, são sistematicamente violentadas. É uma perda. Uma perda de espaços efetivos de tratamento.
*O quadro Repórter SUS é uma parceria entre a Radioagência Brasil de Fato e a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio da Fundação Oswaldo Cruz (EPSJV/Fiocruz)
Edição: Saúde Popular