Saúde

ARTIGO | Clínicas populares concorrem com a terceirização

Estudo analisa como 'Dr. Consulta' cresce em contexto de desmanche do SUS e regressão de direitos sociais

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Clínicas são implantadas em regiões de grande circulação, próximas ou dentro de estações de metrô
Clínicas são implantadas em regiões de grande circulação, próximas ou dentro de estações de metrô - Facebook Dr Consulta

Em abril de 2017, Fabiana, gerente de posto de saúde na periferia de São Paulo, faz um relato sobre o projeto “Corujão da Saúde”, principal programa de saúde em execução na atual gestão da prefeitura de São Paulo (2017-2020): “Todos me dizem que as coisas não mudaram muito, exceto o fato da fila de exames de imagens ter diminuído consideravelmente”.

Em conversas com os funcionários no balcão da Unida Básica de Saúde (UBS) onde eram guardados os prontuários e arquivos com resultados dos exames feitos pelo(a)s usuário(a)s da maior favela de São Paulo, Heliópolis, o assunto era o constante aumento do número de guias de clínicas médias populares incluídas nos prontuários do(a)s usuário(a)s do sistema público de saúde. As agentes comunitárias saúde (ACS) também reforçavam o fenômeno, afirmando que as clínicas populares ajudavam a dar continuidade no tratamento médico do posto de saúde. “Porque o posto marca consulta muito tempo depois e se o exame não estiver pronto você tem que remarcar, e aí demora mais ainda”.

Os relatos apontavam para o fenômeno de expansão das clínicas populares na periferia de São Paulo e revelavam um “quarto caminho” entre o SUS, os planos de saúde e as Organizações Sociais de Saúde (OSS), o acesso monetarizado, rápido e com avaliação instantânea do atendimento médico concorrendo com a terceirização do sistema de saúde. Paralelamente, gerando uma quarta revolução industrial no sistema de saúde brasileiro.

Como uma pequena clínica tem um grande impacto no sistema de saúde brasileiro?

A inteligência artificial tornou possível desenvolver o nosso próprio sistema de registros médicos, avaliação dos usuários e dados dos pacientes“, diz Srougi, fundador do Dr. Consulta.

Agora, podemos analisar estatísticas científicas e médicas que nos ajudam a identificar a probabilidade de alguém contrair uma condição de saúde crônica no futuro e depois tratá-los imediatamente para reduzir ou eliminar esse risco“. Com esse portfólio, a clínica popular persegue uma forte estratégia de diferenciação no tratamento médico individual, ampliando sua base de clientes para preencher um novo nicho do mercado financeiro de saúde.

A necessidade de manter as redes de saúde do sistema público desintegradas e fragmentadas, nesse caso, fortalece os novos elos de coprodução dos serviços de saúde, com foco no usuário. Além disso, aproveita o vácuo normativo do Sistema Único de Saúde (SUS), criando suas próprias regras, estabelecendo novos vínculos de risco e produzindo novas práticas sociais.

Assim fragilizam-se os princípios do SUS e é nesse ponto, então, que as clínicas populares passam a ser complementares à saúde pública, e a monetarização vai se constituindo em direitos sociais. Ou seja, o valor da saúde passa a ser o valor do acesso que as clínicas populares disparam pela linguagem do autosserviço de cada cliente no ato de pagamento das consultas e/ou exames.

Nesses termos, os dados dos pacientes registrados em um sistema de prontuários digitais passam a se transformar em “ovos de ouro” que “põem” infinitas possibilidades para o mercado financeiro de saúde.

Mais uma vez, o capitalismo descobriu uma forma de explorar a força de trabalho de toda uma nova população pois, da perspectiva do capital, a única coisa melhor do que um trabalhador mal pago é alguém que faz o trabalho por nenhum tipo de pagamento.

Isso fica mais evidente quando o cliente da clínica é instigado a participar da cocriação do produto, seja da perspectiva material, da avaliação da clínica, do médico, do acolhimento mediante aplicativo (APP) e afins, seja da perspectiva simbólica, da atribuição de sentido na produção do valor da marca.

Problematizar o fenômeno de expansão das clínicas médicas populares em áreas de vulnerabilidade socioeconômica e civil em São Paulo, tendo como foco diferentes conformações de riscos relacionadas às necessidades de acesso aos serviços de saúde é crucial. Isto porque elas condicionam e determinam a produção da saúde em sentido amplo, e no campo da Saúde Pública, em particular.

Nesse sentido, o desmanche do SUS com o seu baixo financiamento, o avanço das formas de monetarização do acesso aos serviços de saúde e a regressão das políticas sociais, nos fazem questionar o que pode vir a ser proteção social hoje, para pessoas que vivem num contexto de individualização crescente do corpo social, e qual deve ou pode ser o papel da Saúde Pública nesse novo contexto.

 

*Ricardo Lima Jurca,  sociólogo e doutor em Ciências, é autor da pesquisa “Individualização social, assistência médica privada e consumo na periferia de São Paulo”, defendida no final de abril pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP)

Edição: Cecília Figueiredo