Em abril de 2017, Fabiana, gerente de posto de saúde na periferia de São Paulo, faz um relato sobre o projeto “Corujão da Saúde”, principal programa de saúde em execução na atual gestão da prefeitura de São Paulo (2017-2020): “Todos me dizem que as coisas não mudaram muito, exceto o fato da fila de exames de imagens ter diminuído consideravelmente”.
Em conversas com os funcionários no balcão da Unida Básica de Saúde (UBS) onde eram guardados os prontuários e arquivos com resultados dos exames feitos pelo(a)s usuário(a)s da maior favela de São Paulo, Heliópolis, o assunto era o constante aumento do número de guias de clínicas médias populares incluídas nos prontuários do(a)s usuário(a)s do sistema público de saúde. As agentes comunitárias saúde (ACS) também reforçavam o fenômeno, afirmando que as clínicas populares ajudavam a dar continuidade no tratamento médico do posto de saúde. “Porque o posto marca consulta muito tempo depois e se o exame não estiver pronto você tem que remarcar, e aí demora mais ainda”.
Os relatos apontavam para o fenômeno de expansão das clínicas populares na periferia de São Paulo e revelavam um “quarto caminho” entre o SUS, os planos de saúde e as Organizações Sociais de Saúde (OSS), o acesso monetarizado, rápido e com avaliação instantânea do atendimento médico concorrendo com a terceirização do sistema de saúde. Paralelamente, gerando uma quarta revolução industrial no sistema de saúde brasileiro.
Como uma pequena clínica tem um grande impacto no sistema de saúde brasileiro?
“A inteligência artificial tornou possível desenvolver o nosso próprio sistema de registros médicos, avaliação dos usuários e dados dos pacientes“, diz Srougi, fundador do Dr. Consulta.
“Agora, podemos analisar estatísticas científicas e médicas que nos ajudam a identificar a probabilidade de alguém contrair uma condição de saúde crônica no futuro e depois tratá-los imediatamente para reduzir ou eliminar esse risco“. Com esse portfólio, a clínica popular persegue uma forte estratégia de diferenciação no tratamento médico individual, ampliando sua base de clientes para preencher um novo nicho do mercado financeiro de saúde.
A necessidade de manter as redes de saúde do sistema público desintegradas e fragmentadas, nesse caso, fortalece os novos elos de coprodução dos serviços de saúde, com foco no usuário. Além disso, aproveita o vácuo normativo do Sistema Único de Saúde (SUS), criando suas próprias regras, estabelecendo novos vínculos de risco e produzindo novas práticas sociais.
Assim fragilizam-se os princípios do SUS e é nesse ponto, então, que as clínicas populares passam a ser complementares à saúde pública, e a monetarização vai se constituindo em direitos sociais. Ou seja, o valor da saúde passa a ser o valor do acesso que as clínicas populares disparam pela linguagem do autosserviço de cada cliente no ato de pagamento das consultas e/ou exames.
Nesses termos, os dados dos pacientes registrados em um sistema de prontuários digitais passam a se transformar em “ovos de ouro” que “põem” infinitas possibilidades para o mercado financeiro de saúde.
Mais uma vez, o capitalismo descobriu uma forma de explorar a força de trabalho de toda uma nova população pois, da perspectiva do capital, a única coisa melhor do que um trabalhador mal pago é alguém que faz o trabalho por nenhum tipo de pagamento.
Isso fica mais evidente quando o cliente da clínica é instigado a participar da cocriação do produto, seja da perspectiva material, da avaliação da clínica, do médico, do acolhimento mediante aplicativo (APP) e afins, seja da perspectiva simbólica, da atribuição de sentido na produção do valor da marca.
Problematizar o fenômeno de expansão das clínicas médicas populares em áreas de vulnerabilidade socioeconômica e civil em São Paulo, tendo como foco diferentes conformações de riscos relacionadas às necessidades de acesso aos serviços de saúde é crucial. Isto porque elas condicionam e determinam a produção da saúde em sentido amplo, e no campo da Saúde Pública, em particular.
Nesse sentido, o desmanche do SUS com o seu baixo financiamento, o avanço das formas de monetarização do acesso aos serviços de saúde e a regressão das políticas sociais, nos fazem questionar o que pode vir a ser proteção social hoje, para pessoas que vivem num contexto de individualização crescente do corpo social, e qual deve ou pode ser o papel da Saúde Pública nesse novo contexto.
*Ricardo Lima Jurca, sociólogo e doutor em Ciências, é autor da pesquisa “Individualização social, assistência médica privada e consumo na periferia de São Paulo”, defendida no final de abril pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP)
Edição: Cecília Figueiredo