Há um ano e três meses, Adriana dos Santos Menezes, de 41 anos, foi informada que o aluguel na pensão onde morava, no centro de São Paulo (SP), seria reajustado de R$ 900 para R$ 1.300, ou seja, uma variação de mais de 44%.
"Por coincidência, a gente foi num posto de saúde e ouviu duas senhoras conversando sobre ocupações e dizendo como era, como funcionava. A gente foi morar lá dois dias depois", conta.
Ela, que é cadeirante, mora hoje no primeiro andar da Ocupação 9 de Julho, onde os moradores construíram rampas de acessibilidade — o que era impraticável na antiga pensão onde morava.
Mesmo com um teto onde morar, Adriana compõe a estatística do déficit habitacional no país junto a outros milhões de brasileiros que, por exemplo, têm ônus excessivo com aluguel e comprometem mais de 30% da renda com locação de moradia.
A Fundação João Pinheiro, referência nacional sobre déficit habitacional, afirma que o termo “indica a necessidade de construção de novas moradias para atender à demanda habitacional da população em dado momento”. Em 2015, este número era de 6,3 milhões de domicílios.
O termo não diz respeito somente a pessoas em situação de rua e incorpora também “domicílios precários; coabitação familiar; ônus excessivo com aluguel urbano; e adensamento excessivo de domicílios alugados". Esta definição é importante instrumento para mensurar a emergência habitacional no país. Mas, para arquitetos e urbanistas, o conceito também tem limitações.
O Observatório das Remoções, por exemplo, passou a empregar "necessidades habitacionais" em vez de déficit, como explica Regina Dulce Lins, pesquisadora ligada ao grupo da Universidade de São Paulo (USP).
"O déficit habitacional, normalmente, está associado no discurso a construção de novas casas. A necessidade habitacional [por sua vez] incluiria a construção de novas casas, mas não só; ela incluiria a adequação de muitas habitações que já existem hoje, mas que tem vários graus de precariedade. E uma adequação disso já resolveria uma parte destas necessidades", pondera.
Em 2015, o ônus excessivo com aluguel representou metade do total do déficit habitacional do país, segundo o último estudo da Fundação João Pinheiro.
Na capital paulista, quase 1,2 milhão de famílias vivem em situação precária de moradia, informou Fernando Chucre, secretário Municipal da Habitação de São Paulo, na ocasião do desabamento do edifício Wilton Paes de Almeida no Largo do Paissandu. Na região metropolitana, a pressão do aluguel sob os salários representou 58% dos casos.
Prince*, de 36 anos, enfrentou este problema ao chegar no Brasil. Ele migrou de Gana, país localizado na África Ocidental, há quase quatro anos e teve dificuldades em custear o valor integral do aluguel.
"Eu moro há quatro anos e eu já paguei caro antes na Bela Vista, na [rua] Conselheiro Ramalho, na 13 de maio. Mas o quarto era muito caro: 600, 800. Graças a Deus um amigo veio me falar que eu poderia morar aqui", afirmou à reportagem, também na Ocupação 9 de Julho.
Para a professora Luciana Royer, docente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP, o problema habitacional vai muito além do que uma simples equação entre novos empreendimentos construídos e as pessoas que precisam de novas moradias.
Mercado
Na capital paulista, as vendas de imóveis cresceu 46,1% em 2017, quando comparado ao ano anterior, e atingiu 23.629 unidades comercializadas. Os lançamentos de novos empreendimentos imobiliários ultrapassaram a marca 28,6 mil imóveis no mesmo ano, segundo dados do Sindicato da Habitação do Estado de São Paulo (Secovi-SP).
"Não adianta eu ter uma enorme oferta do mercado imobiliário. Isso não necessariamente vai reduzir o déficit habitacional que essa oferta do mercado imobiliária não estiver voltada para a faixa de renda que mais necessita. Para essa faixa de renda que mais necessita, temos que trabalhar com outras soluções habitacionais", afirma Royer.
Neste sentido, a construção de novas unidades habitacionais e o financiamento à casa própria são apenas alguns dos itens da política habitacional, que também pode — e deve, segundo os especialistas — agregar a reabilitação de edifício antigos, urbanização de favelas e a locação social.
"A composição do déficit foi mudando e os conceitos que foram trabalhados dentro dele, ao longo das décadas de 1980 e 1990. A gente cada vez mais percebe que o nosso problema é urbano e não só habitacional."
Alternativas
Luciana Royer defende, por exemplo, a criação de um parque habitacional destinado à locação social para pessoas de “baixíssima renda”. A proposta não deve ser confundida com o bolsa-aluguel, subsídio de caráter emergencial após incidentes como enchentes e incêndios.
"Uma das saídas que a gente tem visto e debatido é a locação social. O direito não é à propriedade, mas à moradia", argumenta a professora.
Royer estudou o programa estadual de moradia em São Paulo, a Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU), em 2002 na sua tese de mestrado. Segundo ela, historicamente o governo trabalha com uma visão que não integra a política habitacional com serviços e equipamentos públicos, além de desconectar da pauta da geração de emprego.
Raimundo Bonfim, da Central de Movimentos Populares (CMP), pontua que a crise econômica está diretamente relacionada ao problema habitacional. Ele pondera que medidas de desfinanciamento da Caixa Econômica Federal e do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) aumentam a exclusão nas cidades.
"A moradia, do ponto de vista objetivo, se materializa mais rapidamente porque as pessoas desempregadas diminuem a renda e não têm condições de pagar aluguel. Elas não têm outras alternativas e aumenta o número de pessoas em favelas e o número de ocupações de prédios vazios nas grandes e médias cidades", disse.
Prática
As entidades já começam a trabalhar com a mudança do conceito na prática. O conceito de necessidades habitacionais embasa a atuação, por exemplo, do Fórum Mundaréu da Luz, coletivo de entidades e pessoas que moram, trabalham e militam na região conhecida como “cracolândia”, no centro de São Paulo.
A proposta foi idealizada após uma ação da Prefeitura, em maio de 2017, que demoliu casas na região e ameaçou o despejo de dezenas de famílias.
Dentro da proposta do Fórum, o Observatório das Remoções fez um levantamento das necessidades habitacionais do território, estigmatizado como cena pública do uso de crack. Como resultado, as necessidades mostraram mais variadas do que o que era apresentado pelos discursos oficiais, diz Regina Dulce Lins.
"Não trabalhamos ali em nenhum momento com o conceito de déficit porque todo mundo que está lá está morando de algum jeito. O que precisa é o entendimento da diversidade das formas de morar na área para que a política também fosse diversa."
Além da casa própria, os pesquisadores identificaram no território a necessidade de moradia terapêutica, hotel e locação sociais.
Em entrevista para o Brasil de Fato, a arquiteta Raquel Ronilk falou sobre a relação entre as centenas de imóveis vazios no centro de São Paulo, sem função social, e a especulação imobiliária.
Com a colaboração de Juca Guimarães
* O entrevistado não quis identificar seu sobrenome
Edição: Juca Guimarães