“Pediatria não tem agora. Só em caso de emergência, a pessoa chega lá no extremo do extremo. Eles não atendem mais pediatria. Mandam para um AMA ou pra outro serviço mais próximo”, se queixa Carolina Catarina de Novaes, moradora da Comunidade 1010, vizinha do Hospital Universitário (HU) da Universidade de São Paulo (USP), que desde o ano passado fechou o atendimento do Pronto-Socorro Infantil.
Novaes, que é moradora há 27 anos da comunidade no Rio Pequeno, zona Oeste da capital, é usuária do HU desde pequena e teve seu dois filhos na unidade, o bebê de 8 meses, Hyago Davi, e Deryck Ryan, de seis anos. “O Derek [seis anos] há uns quatro ou cinco anos atrás eu ainda conseguia passar. Ele chegou a ficar internado. Tinha atendimento adequado. Quando o Yago nasceu e na minha gestação teve alguns atendimentos que não consegui ter lá. Poucas vezes conseguiu passar lá”.
Com o filho menor conseguiu ser atendida apenas uma vez desde que nasceu. “Das vezes que levei porque ele estava com febre, a médica olhou pra ele e disse que não podia atender porque estava sem água. Uma outra vez ele estava com virose e febre, a mesma médica não o atendeu”.
Sucateamento
Carolina não é um caso isolado. Há quatro anos o HU atendia 17 mil pessoas por mês. “Recebe 3 mil [hoje]. Fazia 30 partos por mês, faz três. Tem oito centros cirúrgicos, tem dois funcionando mal. Ele tá praticamente fechado”, relata Lester Amaral Júnior, da coordenação do Coletivo Butantã na Luta.
Desde o final de 2013, o HU perdeu 406 profissionais, por conta do Plano Individual de Demissão Voluntária (PIVD). No primeiro plano de demissão voluntária da USP, onde o HU entrou. “O HU tinha 1800 funcionários, hoje tem menos de 1400”, diz o coordenador do coletivo.
Médicos, enfermeiros, assistentes sociais e técnicos de enfermagem são as categorias mais atingidas. O Pronto-Socorro Infantil foi fechado em novembro do ano passado, em dezembro houve o fechamento parcial do Pronto-Socorro Adulto. Atualmente atendem somente casos de emergência e pacientes encaminhados por outros serviços de saúde. “Só o fechamento do PS Infantil deixa 60 mil crianças na região sem referência de atendimento”, calcula Lester.
Gerson Salvador, clínico-geral no HU e diretor do Sindicato dos Médicos de São Paulo (Simesp), relata que a sobrecarga de trabalho para os que não aderiram ao PIDV empurrou muitos profissionais a pedirem demissão. “Cerca de um terço dos anestesistas deixaram o serviço, isso diminuiu muito o número de procedimentos cirúrgicos”.
Há uma redução importante também de leitos para internação e os de terapia intensiva. Cerca de 20% a menos de leitos disponíveis para internação, 40% a menos de leitos de terapia intensiva adulto. Havia 20 leitos, hoje somente 12”, detalha Salvador.
Equidade zero
Na região do Butantã, onde vivem aproximadamente 458 mil pessoas, conforme projeção baseada no Censo 2010 da Fundação IBGE, existem 1607 leitos gerais, o equivalente ao coeficiente de 3,52 leitos por 1000 habitantes. Situação bastante crítica se comparada a localidades como Vila Mariana, que para 359 mil pessoas, há um coeficiente de 14,90 leitos por mil habitantes, e Pinheiros, com uma população de 294.607 onde a média é de 14,17 leitos para mil habitantes.
Por conta disso, o coletivo Butantã na Luta passou a organizar a se organizar com a população, a partir da aplicação de 340 questionários com quatro questões básicas: não desvincular da USP; restituir o padrão de serviço do hospital como o que havia em 2013; manter o Pronto-Socorro aberto e contratar os 406 funcionários; e formar um conselho gestor.
Em 2014 o antigo reitor Marco Antonio Zaggo, atual secretário estadual de Saúde, tentou desvincular o HU da Universidade de São Paulo (USP) e passar para a Secretaria de Saúde do Estado. “Perderia o caráter de hospital-escola”, explica o militante do coletivo Butantã na Luta.
Segundo ele, além do atendimento secundário, o hospital universitário forma 2.400 profissionais anualmente, de forma global ou integral, em sete carreiras de saúde. “O pessoal da Enfermagem, por exemplo, quase 40% do curso dele é dentro do HU”.
A comunidade de estudantes e trabalhadores da USP, do HU e moradores do entorno se mobilizaram em passeatas e greve e o governador Geraldo Alckmin recuou da desvinculação.
Em 2017, quando a situação do HU ficou mais crítica, a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) aprovou uma emenda apresentada pelo deputado estadual Marco Vinholi (PSDB-SP) - relator do orçamento 2018 - destinando R$ 48 milhões dos royalties da exploração de petróleo do pré-sal para novas contratações, como fruto da luta da população pela saúde pública.
Pressão
O deputado estadual João Paulo Rillo (PSOL-SP) conta que o movimento entregou um abaixo-assinado com 44 mil assinaturas ao Ministério Público Estadual e à Alesp pedindo o funcionamento pleno do HU. “Praticamente todas as bancadas aprovavam essa iniciativa. O orçamento foi aprovado na madrugada de 27 de dezembro do ano passado. A reivindicação era para que R$ 48 milhões fossem destinados para pagamento de pessoal, quando o orçamento foi publicado, a gente percebeu que o relator tinha cometido um erro. Ele colocou atribuição para custeio ao invés de pessoal”, pontua.
Segundo Rillo, inicialmente o erro não foi visto como um problema político. “O problema é que isso se estende há quase seis meses. Na minha opinião, isso não foi simplesmente um erro técnico. Isso foi uma iniciativa política mesmo pra retardar. Foi uma manobra política para enganar as pessoas”, avalia.
Nesse momento, há três ações do mandato do parlamentar para pressionar a liberação do recurso. “Protocolamos uma indicação ao governador, um requerimento de convocação do secretário na Comissão de Ciências e Tecnologia [da Assembleia Legislativa] e um requerimento de informações bem completo”.
Essa semana estão previstas mobilizações na Alesp para pressionar a liberação do recurso. “O projeto da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2019 já chegou à Assembleia Legislativa e continua a pendência do orçamento passado”, denuncia Rillo. De acordo com o parlamentar, para 2018, o custo previsto da unidade era de R$ 275 milhões aproximadamente.
Enquanto isso, Carolina tem que peregrinar a um dos atendimentos mais distantes de onde mora, como as Assistências Médicas Ambulatoriais (AMAs) Jardim Peri-Peri e João XXIII, ou o Pronto Socorro Municipal Dr. Caetano Virgílio Neto, mais conhecido como PS Bandeirantes, que não faz internações e não tem centro cirúrgico nem UTI.
Outro lado
Até o fechamento desta reportagem, a assessoria de imprensa da Secretaria Estadual de Saúde, que tem à frente Marco A. Zaggo, não respondeu aos questionamentos da redação sobre a situação do Hospital Universitário da USP e a emenda aprovado no orçamento de 2018.
Edição: Juca Guimarães