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Obra de Frantz Fanon traça paralelo entre colonialismo e intervenção militar no Rio

Trajetória política e teórica do intelectual martinicano está registrada em livro brasileiro pioneiro

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Psiquiatra e militante escreveu uma das obras mais importantes sobre o racismo, traduzido em português como "Pele Negra, Máscaras Brancas"
Psiquiatra e militante escreveu uma das obras mais importantes sobre o racismo, traduzido em português como "Pele Negra, Máscaras Brancas" - Reprodução
Trajetória política e teórica do intelectual martinicano está registrada em livro brasileiro pioneiro

Intelectual e militante negro, autor da expressão "descolonização das mentes", Frantz Fanon é destaque no pensamento negro desde o século 19, com escritos traduzidos em mais de dez línguas. Frantz Fanon: Um Revolucionário, Particularmente Negro, uma obra pioneira no país, foi lançada na última sexta-feira (11), em São Paulo, pela Ciclo Contínuo Editorial. O livro debate a trajetória política e teórica do pensador negro, que é cada vez mais atual e dialoga com a realidade brasileira. 

"Em Os Condenados da Terra, a descrição de Fanon sobre a colônia é a mesma que podemos utilizar para falar do Rio de Janeiro. Aliás, ler Fanon sem saber de que se trata de um autor de algumas décadas atrás e dizer que essa descrição é das favelas de Rio, São Paulo, Recife e Rio Grande do Norte, é possível encaixar perfeitamente [no contexto brasileiro atual]. Fanon nos ajudaria muito a olhar para a ocupação militar no Rio de Janeiro e dizer: 'isso é a expressão contemporânea do colonialismo e é contra isso que precisamos lutar'", afirma Deivison Faustino, ou Deivison Nkosi como é conhecido, professor de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e autor do livro sobre Fanon. 

Frantz Omar Fanon nasceu em 1925 na Martinica, uma pequena ilha do Caribe de colônia francesa. Um episódio importante da adolescência do pensador, que marcaria o início de suas reflexões, foi o contato mais próximo com a sociedade francesa, como informa Nkosi.

"A França estava em guerra com a Alemanha, na Segunda Guerra Mundial. Vários soldados franceses foram para a Martinica e, nesse processo, a ilha sofreu uma reviravolta, porque os soldados eram brancos e os martinicanos negros, e essa presença dos soldados evidenciou o racismo de uma forma que não havia sido vista antes", relata.

A disparidade racial foi ainda mais evidente para o jovem Fanon quando ele se juntou a alguns rebeldes franceses na luta pela reconquista da República Francesa, quando o país estava invadido pela Alemanha. Na frente de batalha, Fanon percebeu, pelo tratamento diferenciado dos soldados brancos, que embora sempre tivesse se identificado como francês, os europeus não o viam da mesma maneira pela cor de sua pele.

Como veterano de guerra, Fanon voltou para a Martinica e, graças à passagem pelo exército francês, teve a oportunidade de estudar na França, onde se formou como psiquiatra e escreveu uma das obras mais importantes sobre o racismo, traduzido em português como Pele Negra, Máscaras Brancas.

Envolvido na luta pela independência da Argélia, Fanon se engajou nos processos mais amplos sobre o pan-africanismo, ou seja, em movimentos de libertação na África. O pensamento fanoniano era vinculado à práxis (teoria e prática juntas), já que, enquanto ele era um ativo militante do movimento da negritude, também registrava esses processos políticos em seus textos.

Dennis de Oliveira, professor do curso de Jornalismo da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP), destaca que as discussões fanonianas traçam as relações raciais a partir do panorama da geopolítica internacional, particularmente, das regiões do chamado terceiro mundo na América Latina e África, nas suas relações de subordinação à Europa pelos processos de colonização e escravização.

"Entender Fanon e a discussão que ele faz da dialética senhor-escravo, de que forma essas relações raciais implicam em uma subjugação ideológica da dimensão da colonialidade do poder, é importante para entendermos a situação da população negra hoje, não só no Brasil, mas em toda a América Latina e também na África", afirma. 

Em seus breves 36 anos de vida, Fanon foi conhecido como filósofo e ensaísta marxista, abordando os efeitos psíquicos do racismo, analisados como um subsídio para as estratégias da militância negra até os dias de hoje, como ressalta Oliveira. "Ele apresenta algumas pistas para entendermos como é possível construir um olhar que contraponha a colonialidade do poder". 

Desconhecido

Apesar da genialidade, Fanon ainda é pouco estudado e discutido, especialmente no Brasil. Oliveira atribui essa invisibilidade a uma das "feridas mais fortes das relações sociais brasileiras": o racismo. Ele ressalta ainda que os estudos fanonianos apresentam a discriminação racial para além da dimensão comportamental, mas enraizada como um mecanismo estrutural.

"Infelizmente, a academia brasileira é eurocêntrica e tende a privilegiar os autores europeus, mas é preciso levar em consideração que a produção teórica europeia foi feita em contextos distintos do nosso. Como Fanon tem esse lugar de fala da América Latina --- que não interessa para uma academia eurocêntrica --- e isso ainda expressa um desejo, uma perspectiva teórica de libertação, emancipação do jugo colonial e antirracista, isso acaba incomodando, por isso ele é pouco estudado", argumenta. 

Para Nkosi, só agora ser publicado o primeiro livro brasileiro sobre Fanon indica o valor que a sociedade dá para a produção intelectual de autores negros e o quanto falta de conhecimento sobre o nosso Brasil, que tem sua formação histórica vinculada à negritude.

"O racismo moderno é tão bem-sucedido que não conseguem ver autores negros como pensadores. E, mesmo quando indivíduos conseguem furar essa barreira e ascender à academia de forma individual, a produção desses autores é sempre negligenciada e, às vezes, até por um pensamento progressista de esquerda", questiona. 

Há mais de cinco décadas do falecimento de Fanon, Nkosi destaca também a forte influência que o martinicano exerceu para autores brasileiros renomados. "A discussão do Paulo Freire sobre opressor e oprimido --- e toda a ideia da libertação --- é inspirada em Fanon, como o próprio Paulo Freire reconhecia. Se pensarmos um autor como Glauber Rocha, por exemplo, que discute como o cinema pode contribuir para a emancipação, ele traz o Fanon na hora de pensar uma estética da violência, uma estética engajada". 

Nkosi chama a atenção para a relevância do pensamento negro, como defendia Fanon na proposta de reformulação das bases da sociedade em constante diálogo com a periferia. "Olhar para as experiências históricas, se apropriar da nossa produção pode nos ajudar a pensar saídas para o futuro. Essa é a aposta também do livro: não é só uma obra que volta ao passado para falar de um autor do passado, mas um livro que aposta no futuro também, que as crises são destruições de muitas coisas e também pressupostos para que o novo surja". 

A obra Frantz Fanon: Um Revolucionário, Particularmente Negro está disponível para venda no site da Ciclo Contínuo Editorial, uma editora independente que se dedica à publicação de obras literárias e pesquisas na área das Humanidades, com enfoque especial na cultura afro-brasileira.

Conheça um pouco mais sobre o pensamento de Frantz Fanon:

Edição: Juca Guimarães