O urbanista e arquiteto Nabil Bonduki conversou com a Rádio Brasil de Fato sobre os problemas que envolvem o déficit habitacional na cidade de São Paulo. Ex-vereador pelo Partido dos Trabalhadores (PT) na cidade entre 2013 e 2016, o arquiteto também comentou sobre as políticas públicas para moradia popular.
As ocupações de imóveis vazios na região central e que não tinham nenhuma função social são reflexos da grave falha de gestão da Prefeitura no combate ao déficit habitacional.
Em entrevista à jornalista Anelize Moreira, Nabil afirmou que as medidas são paliativas e a prefeitura empurra com a barriga o problema. Por outro lado, também existe a questão da especulação imobiliária que eleva o preço dos terrenos na cidade. Confira alguns trechos da entrevista.
Rádio Brasil de Fato: Sobre a ferida que foi escancarada depois do desabamento do prédio na região central de São Paulo, Edifício Wilton Paes de Almeida, no Largo do Paissandú. Como você tem avaliado as políticas de moradia na cidade de São Paulo?
Nabil Bonduki: São desastrosas de uma maneira geral. Elas sequer conseguiram acompanhar a dinâmica nacional, porque, a nível nacional, o programa 'Minha Casa, Minha Vida' conseguiu, pelo menos, fazer uma produção com um certo significado quantitativo, onde foram contratados mais de 5 milhões de unidades, cerca de 3.700 milhões já foram entregues. Embora existam muitas críticas e eu também tenho críticas sobre a localização desses conjuntos, por exemplo, mas em nível nacional pelo menos nós tivemos alguma iniciativa importante do governo.
Agora, a nível municipal não conseguiram, nem no período áureo do 'Minha Casa, Minha Vida', quando havia muitos recursos do governo federal, o município não conseguiu produzir quase nada. A produção das últimas gestões foi irrisória. Na administração Kassab, período de maior disponibilidade de recursos tanto do município quanto em nível nacional, nós tivemos algumas ações importantes a respeito de urbanização de favelas, que tiveram muita repercussão pela qualidade dos projetos, mas do ponto de vista quantitativo é absolutamente decepcionante, porque na verdade ela gerou mais déficit do que o enfrentou. Uma vez que muitas urbanizações de favela tiveram como resultado a remoção de famílias, incêndios de favelas e outros tipos de situações, que geraram uma quantidade enorme de pessoas que hoje vivem recebendo auxílio-aluguel de R$ 300, sendo 28 mil famílias hoje que estão nessa situação: alugando cômodos e pequenas moradias também precárias, consumindo uma quantidade enorme de recursos da Prefeitura e sem solução à vista.
Qual o efeito disso na questão da moradia?
E, com isso, não só ocupações como de prédios, mas também ocupações de adensamento, sobretudo, de favelas aconteceram nesse período de crescimento econômico. Fora o fato de que a própria produção habitacional privada, de mercado e o boom mobiliário a partir de 2006 até 2012/2014 gerou uma elevação muito grande do preço dos imóveis e da terra, o que levou muitas famílias a não terem condições de pagar aluguel. É por isso que, neste momento, esse incêndio deu visibilidade para uma questão que já era e sempre foi muito importante, inclusive nós tivemos muitos incêndios em favelas ao longo dos últimos anos, que não tiveram essa mesma visibilidade até pelo efeito visual, quase que midiático que o incêndio e o desabamento do prédio no centro acabou gerando, mas isso é apenas uma ponta de um iceberg imenso, que é a falta de moradia e as ocupações como a última solução da população.
São Paulo é a maior e mais rica cidade do país e morar na capital não é fácil, porque os alugueis são caros e muita gente não tem condição de pagar. Assim, qual é o uso social dessas ocupações?
Esse é um dos efeitos da nossa cidade, onde vigora um mercado especulativo, de terras e de imóveis, que faz com que muitos proprietários prefiram deixar seus imóveis vazios, subutilizados a dar um uso imediato. Esse problema não é de hoje, ele já foi até mais grave no passado; nos anos 1970, 30% da área urbanizada de São Paulo era vazia, eram glebas ou terrenos vazios e nunca houve instrumentos, até o Estatuto da Cidade, de 2001, para combater essa retenção especulativa de terra. Com o Estatuto da Cidade e, posteriormente, o Plano Diretor, de 2002 e, principalmente, 2014, na gestão Fernando Haddad, foram criados instrumentos para combater essa retenção especulativa de terrenos e de imóveis. Isso acabou tendo como consequência a notificação em 2015/2016, após aprovação do Plano Diretor, de 2 mil imóveis vazios ou subutilizados, que já deveriam estar pagando alíquotas progressivas do IPTU [Imposto Predial e Territorial Urbano], até chegar a 15%, por não apresentarem um projeto de ocupação/utilização para esses terrenos. É um instrumento importante como uma maneira de forçar o proprietário a ocupar e, se não fizer isso, a médio prazo ele acaba tendo praticamente o valor do imóvel sendo consumido pelo IPTU.
Essa política de corte de privilégios para imóveis sem função social teve continuidade?
Em abril do ano passado, a administração do [ex-prefeito] João Doria, hoje Bruno Covas, paralisou essas notificações. No caso de prédios, principalmente da área central, nós temos que entender que a cidade se refiscalizou a partir dos anos 1930. Muitos desses imóveis são antigos; eles precisam de investimento, de manutenção, que os proprietários não parecem dispostos a dar. Então, os movimentos sociais ocupam esses imóveis para dar até uma função social e poder, dessa maneira, também dar um jeito no problema da moradia, porque não é uma solução, é uma gambiarra, mas que, de alguma maneira, permite que essas pessoas possam morar e usar o centro, que é um aspecto importante para a sobrevivência da cidade. Agora, evidentemente, muitos desses prédios não tem condições de serem utilizados e, em alguns casos, os movimentos organizados participam desse processo existe o cuidado em tentar fazer pequenos reparos na parte elétrica, ou seja, criar condições mais favoráveis para que esses prédios possam ser, mesmo que precariamente, utilizados. No caso do edifício que pegou fogo, ali não era um movimento organizado, era de pessoas oportunistas (pessoas que tomam conta desses prédios e cobram aluguel, quer dizer fazem do prédio um objeto de manutenção de uma renda, ou seja, pequenos rentistas que exploram as necessidades da população), e aí nessas condições muitos desses imóveis acabam ficando em condição muito precária de utilização e esse prédio no centro, evidentemente, tinha problemas desse tipo. É muito preocupante que isso aconteça na nossa cidade.
Sobre o auxílio-aluguel, chamado Bolsa Aluguel, essas famílias que perderam o teto no desabamento vão receber R$ 1.200 no primeiro mês e depois R$ 400 mensais, segundo a Prefeitura. A Bolsa Aluguel é uma alternativa ou precisamos de uma política habitacional para atender a cidade de São Paulo?
É uma solução extremamente paliativa, até a própria Prefeitura reconhece isso. Antes de ter sido vereador no governo da Luiza Erundina, eu fui superintendente de habitação popular, que é um órgão que nós criamos e cuidava da urbanização de favelas, programas para cortiços, mutirões etc. Na época, quando a gente precisava fazer uma urbanização de favela, por exemplo, ou mesmo os primeiros projetos de produção de habitação na área central a partir de áreas já ocupadas, nós tínhamos sempre um problema: onde as famílias iam ficar durante as obras. Naquela época, a metodologia que existia era de criação do que a gente chamava do pulmão, que era a construção de barracões provisórios para que as famílias pudessem ficar ali enquanto a obra era realizada. Essa solução era complexa, porque nós tínhamos que construir o galpão e, para isso, uma licitação para essa obra e administrá-lo ao longo de um largo período, o que evidentemente demorava muito tempo até poder começar a obra de urbanização. Naquela época já tinha surgido a ideia de que o mecanismo tinha que ser diferente, mas não foi possível implementar naquele momento. No governo da Marta, isso foi implementado, que é o chamado Bolsa Aluguel, mas a ideia inicial disso não era alojar definitivamente famílias, mas famílias que tinham um plano de voltar para a favela ou no caso da construção de uma habitação e, provisoriamente, durante oito meses/um ano ficariam recebendo o Bolsa Aluguel e alugariam, no mercado, uma moradia para poder ficar ali.
E o que deu errado no Bolsa Aluguel?
Eu não vou dizer que a Bolsa Aluguel é uma medida equivocada, ela tem razão de ser, mas ela tem um objetivo claro, que é provisório, pelo menos da maneira como ela foi montada e aprovada pela Câmara na administração Marta. O problema é que, principalmente, na gestão Kassab não se produziu unidades novas e gerou uma quantidade enorme de pessoas dependentes de Bolsa de Aluguel, sem nenhuma previsão, inclusive, de construção de conjuntos para abrigar essas famílias.
Hoje, nós devíamos estar construindo, na lógica do Bolsa Aluguel, 30 mil unidades habitacionais só para essa população, fora as outras que precisam também ser atendidas. Agora, poderia existir um outro tipo de programa de locação social, mas isso deveria ser formulado de uma outra maneira, não como essa Bolsa Aluguel; o ideal seria uma maneira para Prefeitura subsidiar o aluguel de pessoas que não tem renda para ter acesso a uma moradia de aluguel e, ao mesmo tempo, termos uma produção organizada de moradias de aluguel realizadas pelo mercado, por movimentos sociais ou pela própria Prefeitura.
Sobre as famílias do desabamento do prédio no centro, há a previsão de Bolsa Aluguel de R$ 400 por um ano, mas pela lógica da Bolsa Aluguel, a Prefeitura e o estado deveria estar ao mesmo tempo produzindo habitação para que essas pessoas, finalizado esse ano, elas pudessem ir para uma moradia definitiva. Agora está simplesmente se empurrando com a barriga para tirar as pessoas da frente sem se apresentar uma solução definitiva para o problema dessas famílias, que deveria estar em pauta. Provavelmente, neste momento, nós vamos ter essas famílias atendidas dessa maneira precária para que daqui a um ano, quando ninguém mais estiver falando do assunto, essas famílias voltem a situação precária que já estavam antes.
Edição: Juca Guimarães