O direito à saúde pública e universal é uma das previsões mais importantes da Constituição de 1988, texto cujos valores aproximaram o Brasil de uma social-democracia garantidora de condições básicas à dignidade humana. Nos últimos 30 anos, porém, o acesso aos serviços vem sofrendo graves consequências por conta da pressão do capital pela privatização do setor aliada à falta de financiamento público para os equipamentos de saúde pública.
"O fenômeno que a gente tem no Brasil é muito complexo, porque o SUS está de pé, só que como um saco vazio. E isso não é de agora. A gente tem esse processo de competição com o SUS desse setor privado sempre em expansão, que é muito preocupante”, aponta Ligia Bahia, professora do Instituto de Saúde Coletiva da UFRJ.
A disputa nem sempre leal entre público e privado na área da saúde é um dos temas a ser discutido na 16ª Conferência Nacional de Saúde, com data prevista para início de 2019. A Conferência terá como tema “8ª + 8 = 16ª”, em referência à 8ª Conferência, ocorrida em 1986, que foi um marco na história da saúde por ter caráter popular e servir de base de discussão para a formulação do SUS na constituinte.
Para Lucia Souto, presidenta do CEBES (Centro Brasileiro de Estudos de Saúde), a Conferência será importante para o fortalecimento da luta em favor do SUS. "Eu acho que é o momento da gente começar a trabalhar nessa disputa de projetos na sociedade brasileira, esse retorno, essa recuperação do espírito de 1988. É um espirito de uma sociedade inclusiva, solidária, com direitos sociais universais, que não é o que a gente está vivendo hoje”, pondera.
Setor privado quer Sistema Nacional de Saúde
A expansão do setor privado sempre contou com apoio dos governos, inclusive os populares, justamente os que deveriam fortalecer o papel do Estado no setor para cumprir o previsto na Constituição, critica Ligia Bahia. Para ela, é uma questão de correlação de forças, em que o setor privado vem ganhando: "o Brasil tem o segundo maior mercado de planos de saúde do planeta. E já tem esse mercado há um bom tempo. Esses empresários vem apresentando a proposta de Sistema Nacional de Saúde desde 2014, então é uma questão de escolha política, já que várias dessas coalizões governamentais não priorizaram o SUS”.
A proposta de implantação de um novo Sistema Nacional de Saúde, discutida em iniciativas promovidas pelo setor privado da saúde, como a Federação Brasileira de Planos de Saúde (Febraplan), vem sendo repudiadas por entidades como a Associação Brasileira de Enfermagem e o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES). Stephan Sterling, da Rede de Médicos e Médicas Populares, afirma que, apesar de o avanço neoliberal não ser novidade, não se pode olhar com descrédito para a situação atual e que os efeitos dessa investida, como a proposta discutida pela Febraplan, podem ser ainda mais nocivos.
“Oferecer de fato um serviço de saúde privado e pautar isso como essencial ainda não havia acontecido. Dentro da saúde suplementar, estão tentando um rearranjo de forças, passando de um consenso pragmático não só no que concerne à disputa financeira, de custo e financiamento, mas agora também em um consenso de sistema, do que se vai oferecer de saúde para a população”, ressalta Sterling.
De acordo com a presidenta do CEBES, a situação financeira do SUS piorou após o golpe em 2016 e o ataque à saúde passou por uma mudança de percurso, principalmente por conta da PEC do Teto, que limita os gastos do governo em setores como saúde e educação em até 20 anos. "Eu acho que é um patamar diferente neste momento. O que está acontecendo hoje, com a emenda constitucional do teto dos gastos em 20 anos foi o que mudou radicalmente a questão".
Para ela, com a crise e o desemprego, as saídas para os problemas não podem ser individuais e sim, sociais. "É preciso fortalecer o SUS com urgência. Apesar de o SUS ter muitos problemas, seu esvaziamento como serviço público fere diretamente a questão da saúde como direito universal no Brasil", conclui.
Edição: Diego Sartorato