A crise hídrica que atingiu o estado de São Paulo entre os anos de 2014 e 2016, provocando um racionamento sem precedentes na maior região metropolitana do país, “obedeceu exclusivamente a interesses eleitorais”, segundo Vicente Andreu, ex-presidente da Agência Nacional de Águas (ANA), em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, durante o 8º Fórum Mundial da Água (FMA), realizado na cidade de Brasília, na última semana.
A seca nos reservatórios, entre eles o da Cantareira, o mais importante da região metropolitana fez com que a Sabesp, a empresa estatal que gere os usos da água no estado, utilizasse águas de baixa qualidade do chamado volume morto desses reservatórios.
“Eu acho que o símbolo de um governador inaugurando captação de volume morto, quando na verdade deveria estar alertando a população para os problemas que têm para se enfrentar, eu penso que é o símbolo de como isso foi trabalhado politicamente”, comenta Andreu.
À época, a Organização das Nações Unidas condenou a atitude do governador Geraldo Alckmin (PSDB) e sua estatal, por omitirem o tamanho da crise à população. Segundo a ONU, informar os paulistas sobre a necessidade de racionamento de água, poderia diminuir o impacto dos problemas gerados pela seca.
A ANA, que foi dirigida por Andreu nos últimos oito anos, foi uma das organizadoras do Fórum Mundial da Água. O evento sofreu duras críticas de movimentos populares e organizações ambientais, que garantem que o FMA é dedicado apenas a publicizar os interesses de grandes corporações ligadas à gestão da água. Essas entidades organizaram um fórum paralelo, o Fórum Alternativo Mundial da Água (FAMA), também em Brasília.
A agência também foi criticada por funcionários da Empresa Brasileira de Comunicação, a EBC. Eles denunciaram que a compra de conteúdos para a cobertura do Fórum Mundial da Água sobrecarregou os trabalhos da empresa. A EBC tinha um estande no evento, na Vila Cidadã.
“Isso tudo foi coordenado por mim. O que nós contratamos da EBC foi exatamente aquilo que se contrataria de uma empresa privada, só que nós não fizemos opção de contratar a Globo, contratar a Record, contratar a Bandeirantes. Nós queríamos contratar tv educativa, para que eles fizessem os nossos produtos.
Na entrevista, Andreu também comentou sobre às críticas ao FMA e também sobre as tentativas de privatização dos usos da água no Brasil, entre eles o saneamento básico. “Eu particularmente sou contra. Não há uma tradição de um serviço público prestado por um prestador privado”, diz.
Confira alguns trechos da entrevista gravada em áudio durante um intervalo na programação do fórum. A conversa com o ex-presidente da ANA durou cerca de 40 minutos.
Brasil de Fato: Você deixou agora a presidência da ANA qual foi o seu legado?
Vicente Andreu: Eu fiquei oito anos na Agência Nacional de Águas e lidamos com um conjunto muito grande de problemas. Secas em diversas regiões do país, enchentes e com o Comitê de Bacia Hidrográfica. A nossa atuação foi sempre na direção de procurar dar solução a essas questões. Pessoalmente eu me sinto uma pessoa muito realizada, mas eu não gosto de ficar fazendo balanço.
Sei que isso pode dar a impressão de que as coisas não foram feitas, mas eu penso que quem pode dizer sobre o legado da minha gestão são as pessoas do Sistema, são os órgão gestores estaduais e os Comitês de Bacia Hidrográfica.
No período da sua gestão frente à ANA teve o golpe e a mudança de governo. Qual o impacto disso na ANA?
Felizmente [nenhum], até por conta da autonomia que nós impusemos [para] que a ANA não ficasse subordinada a nenhum tipo de problema de natureza política, seja no nível federal, seja nos diversos níveis estaduais. O que aconteceu aqui no país, não influenciou de nenhuma maneira, o período no qual eu estive à frente da Agência Nacional de Águas. Influenciou, é claro, a conjuntura. Então bandeiras que antes não estavam apresentadas retomaram, a questão da privatização das empresas de saneamento, que era uma questão que não estava posta, apareceu, mas isso no contexto geral.
A questão da privatização do saneamento tem sido uma realidade nas discussões dos fóruns sobre a água. A Cedae, no Rio de Janeiro, está neste processo processo de privatização. O que você pensa sobre a privatização do setor e da gestão da água?
No geral, há uma certa confusão quando as pessoas falam de privatização da água e privatização do serviço de saneamento. A água é quase sempre vista pelo seu uso e não pela sua natureza. Então a água é vista pelo uso hidrelétrico, a água é vista pela agricultura e pelo saneamento. O saneamento é um uso da água.
A água, no Brasil, é impossível de ser privatizada, porque a Constituição e a própria legislação definem como um bem público. Os serviços da água podem ser privatizados.
E eles já têm sido privatizados...
Tem uma retomada dessa escalada na direção da privatização dos sistemas de água no Brasil. Eu particularmente sou contra. Não há uma tradição de um serviço público prestado por um prestador privado. Eu tive oportunidade de conhecer alguns países do mundo, cito o Japão por exemplo, onde a energia é um serviço prestado por um privado, mas é um serviço público. As taxas de lucro, a obrigação de atender todos. O lucro é muito baixo porque tem segurança, a universalização, atender todos os setores, políticas sociais. Então é um prestador privado, mas o serviço, na verdade, é público.
No Brasil, eu não acredito que isso possa produzir benefícios no curto prazo e também não sei como isso se daria no longo prazo. Então, por princípio de precaução e pela experiência que a gente tem, eu penso que ele deva ser prestado por um empresas públicas.
A estatal de São Paulo, a Sabesp, teve seu capital aberto ao mercado financeiro e na crise hídrica de 2014 foi responsabilizada, assim como o governador Geraldo Alckmin, pela ONU por ter omitido a gravidade do caso para a população. Como você viu o caso, à época?
O que aconteceu em São Paulo foi uma retirada completa da autonomia dos órgãos gestores da Sabesp e a condução da crise em São Paulo obedeceu exclusivamente os interesses eleitorais de 2014. Porque as questões gerais já estavam visíveis no começo de 2014.
Há diversos trabalhos apresentados pela Sabesp, que são uma vergonha do ponto de vista técnico, impedindo que a gente [Agência Nacional de Águas] tomasse as medidas com mais antecedência, inclusive preparando a população, porque ninguém sabia quando aquela crise iria terminar.
Houve por parte dos quadros técnicos da Sabesp muita competência. Ela conseguiu ir adiando a crise, através de manobras na rede e demonstrou uma competência espetacular. Porém, a orientação geral, era uma orientação de natureza política. Por exemplo, se chamava a redução de pressão, que implicava concretamente em um racionamento de água, jamais o governo do Estado de São Paulo, assumiu publicamente que as pessoas que estavam na ponta da linha daquelas redes, quase sempre pobres, estavam enfrentando racionamento.
A situação foi escondida da população, não?
Se trabalhou muito no sentido de esconder a dimensão da crise e depois com a chegada das chuvas no final de 2015 para 2016, houve a venda de uma solução, dizendo que a crise tinha acabado por conta da competência, do que foi feito, isso também não é verdade. Isso é ruim como mensagem para as pessoas. O que aconteceu é que felizmente houve chuvas.
Eu acho que o símbolo de um governador inaugurando captação de volume morto, quando na verdade deveria estar alertando a população para os problemas que têm para se enfrentar, eu penso que é o símbolo de como isso foi trabalhado politicamente.
A baixa da tarifa de energia no governo da presidenta Dilma foi muito criticada por economistas. Para muita gente, no entanto, foi importante por ter aliviado o bolso do consumidor. não é?
A questão tarifária é uma questão central de qualquer serviço público. Evidente que você tem que garantir a qualidade do serviço e isso custa. E você tem que combinar as condições de equilíbrio da prestação do serviço, com as garantias de acesso às populações de renda mais baixa.
A redução da tarifa era absolutamente necessária porque a tarifa de energia elétrica no Brasil, que tem base hidráulica, ela é mais cara muitas vezes, de países que tem base térmica, onde a energia é mais cara. Isso é inexplicável. Então baixar a tarifa era importante.
Mas houve uma política de baixar linearmente, ou seja, baixou para todo mundo. E na minha opinião, isso deveria ter sido feito através de políticas públicas. O Brasil tem mais de 60 milhões de pessoas que têm renda equivalente à classe média na Europa, portanto média alta aqui no Brasil.
Então, a redução não deveria ser linear?
Essas pessoas não precisavam de redução de tarifa. Precisava de redução de tarifa essas que reconhecem que houve uma redução para elas, as pessoas mais pobres. É claro que aí que deveria ter a redução.
Nós deveríamos ter aproveitado o fim da concessão das usinas para criar um fundo nacional, que pudesse gerenciar, financiar a expansão da energia de maneira mais barata, e do outro lado, financiar também aquelas população que não tem condição de pagar tarifa alta no nosso país, que é a grande maioria da população.
O que acabou acontecendo é que teve uma redução generalizada. A população de renda mais baixa que deveria ser efetivamente contemplada com isso ficou muito agradecida, e aquele pessoal, que na minha opinião, não precisariam ter redução de tarifa, depois passou a querer mais vantagens e passou a conspirar abertamente no golpe que se realizou no nosso país.
O Fórum Mundial da Água é constituído por mesas de debates que envolvem muitas corporações, muitas empresas transnacionais. Existe um risco de, cada vez mais, essas empresas transnacionais se apoderarem do poder de água doce que o Brasil tem, já que nós somos os maiores detentores de água doce, 12% do mundo?
Tem um recorte ideológico na sua pergunta. No FAMA só tem quem é contra a privatização. Da maneira como você perguntou, dá a impressão de que aqui no Fórum só tem quem é a favor das corporações. Isso não é verdade. Aliás, acredito que aqui, a maioria desse espaço é contra. Agora, aqui é um espaço que convivem as pessoas que são favoráveis à privatização e as pessoas que são contrárias.
Todos os painéis eles sempre opuseram as duas posições. Aqui não é um fórum das corporações. Muito embora eu goste desse nome, eu gosto da provocação que o FAMA faz, até uso também. Mas aqui é um espaço democrático e convive com as posições.
Tem um problema de uma generalização da privatização da água. Em alguns países é possível privatizar a água, por que a água já é privada. A água, não o saneamento.
Mas tem lugares onde é privatizado?
O Chile é privado, tem propriedade privada, a Austrália é privada, os Estados Unidos é privada. No Brasil a água é pública. Então a água não será privatizada. O acesso à água, dependendo das políticas, das direções que os governos apresentarem, facilitar ou restringir o acesso das populações mais pobres ao uso da água.
Eu acho que a realização do FAMA é fundamental, que essa visão que é muito forte, se fortaleça ainda, mas ela não pode ser, também, uma posição que não permita às pessoas, abrir e discutir democraticamente como a gente também está fazendo aqui.
A condução da crise em São Paulo obedeceu exclusivamente os interesses eleitorais de 2014.
Qual é a importância de acontecer paralelamente a esse fórum, um fórum alternativo, organizado por movimentos populares?
Sempre houve os fóruns alternativos, desde quando eu participo, não sei nos primeiros, concomitante com os fóruns mundial da água. Esses fóruns mundiais da água, estavam muito impregnados, eles foram montados pelas grandes corporações de água no mundo, isso é real, é fato. Então por conta dessa polarização, no início, o Fórum Mundial da Água era um fórum de negócios.
Com o passar do tempo, com a democratização do próprio Fórum Mundial da Água, com o fracasso de muitas políticas de privatização mundo à fora, o Fórum Mundial da Água deixou de ter o caráter inicial que tinha, de ser um fórum muito voltado à infraestrutura, negócios, privatização, participação do capital privado, para ser um fórum mais democrático.
Com isso, você vai abrindo um espaço de interlocução com a sociedade, incorporando inclusive, valores que estão também nos fóruns alternativos. Existirem dois, na minha opinião, é muito importante.
Como estamos conversando com um veículo de opinião de esquerda [o Brasil de Fato], eu só lamento uma coisa: nós fizemos um convite para algumas sessões conjuntas, onde nós teríamos representantes do FAMA, não instituições, em alguns painéis e palestras aqui, garantindo a independência dos dois eventos, mas infelizmente o FAMA, por razões da sua interpretação política não aceitou.
Eu gostaria muito. Talvez no Senegal, nas próximas edições, que os fóruns continuassem acontecendo, que fossem fortes, mas que a gente pudesse criar espaços de interlocução sobre essas posições.
Quanto custou o Fórum? A gente sabe que teve um grande aporte de valores do governo do Distrito Federal, no momento que o DF passa por um racionamento e também teve um aporte do governo federal.
O Fórum Mundial é um fórum caro. A sua realização é cara. O nosso fórum ficou no mesmo padrão dos demais fóruns. Computando tudo, talvez alguma coisa entre 15 e 20 milhões de dólares.
O financiamento desses fóruns também seguiu o padrão: uma parte é obtida pelo financiamento dos espaços, esses espaços [da Vila Cidadã e da Expo] são vendidos. Outra parte através de financiamento público, aqui no caso entre o governo federal e o GDF, outra parte pelas instituições.
Trabalhadores da Empresa Brasileira de Comunicação se mobilizaram contra a EBC, dizendo que estavam sobrecarregados pelos trabalhos aqui dentro do Fórum, de que a ANA teria pagado pelos trabalhos aqui. Você tem acompanhado isso?
Isso tudo foi coordenado por mim. Junto com o Fórum, nós pensávamos em um processo de mobilização da opinião pública. Para isso, a televisão no Brasil é o melhor canal. E procuramos fazer, no início, um pool de tvs educativas do Brasil. Tendo como âncora a televisão educativa de São Paulo, a TV Cultura, e a EBC. E nisso, nós estaríamos comprando dessas tvs educativas, produtos para a mobilização da opinião pública. Programas, como o Roda Viva e os programas da EBC, mas também material didático que sirva para as escolas depois da realização do Fórum, pequenos spots que fiquem para a população.
E era tudo em um processo de mobilização da opinião pública. Não foi dar dinheiro para a EBC, para a EBC fazer o que ela queria. Era tudo dentro de um programa coordenado pela ANA e pela DASA. Por problemas entre as tvs educativas do Brasil, que eu desconhecia, por problemas de natureza política federativos, que eu desconhecia, infelizmente nós não conseguimos fazer esse pool de tvs educativas e acabou ficando restrito à EBC.
Porém, o que nós contratamos da EBC foi exatamente aquilo que se contrataria de uma empresa privada, só que nós não fizemos opção de contratar a Globo, contratar a Record, contratar a Bandeirantes. Nós queríamos contratar tv educativa, para que eles fizessem os nossos produtos.
Como a EBC tem problemas internos evidentes, por aquilo que a gente acompanha na mídia, eu penso que isso não foi passado adequadamente para os trabalhadores da EBC. E parecia que nós estávamos influenciando a programação da EBC. Na verdade nós estávamos comprando produtos da EBC. Portanto, que precisariam do aval técnico da agência, no sentido de mobilizar a opinião pública.
Edição: Juca Guimarães