“Meu presidente, meu vice-presidente, meu ex-presidente bandido. Meu herói, meu juiz moreno desperdício. Meu televisor, meu tutor, meu ilusionista. Meu jornal, minha cobertura, minha merda. Sua cobertura a esta altura nem guarda-chuva podia. Vazavam fezes nas redações do país. Nelson Rodrigues disse que não mais poderia, se Lacerda não se atirasse ao fosso, se a ditadura não os levasse cativos, com filhos, para a boca pequena do país civilizado. Minha candidata, minha presidenta, minha atrapalhada faminta. Se eles não forem embora, se a espada não lhes cair à cabeça, pode ser que pereça antes a Angola de um macro acabritado. Desarvorei-me a uma aventura argentina. Os países não quebram, os países fregem-se, os países capitalizam-se, repactuam-se e refinanciam-se; os países são picolés polares da Gelatto quando acabou já o domingo. Cada país é uma série finita de bilhetes de volto logo e uma série infinita de não volto mais. Minha polícia, minha suspeita, minha cobiça. Minha manifestação, minha solidão, meu vício. Onde vão se unificar os companheiros do assunto do dia? Na semana seguinte ao solstício do outro hemisfério, quando estivermos seguros de que virgens não cometem adultérios, que lacres compensam, que charutos brotam nos Estados Unidos de uma Cuba fodida, então poderemos pitar e tragar e saber, mas não será nada fácil tudo isso.”
(Wilson Alves-Bezerra, em ‘O Pau do Brasil’, Ed. Urutau, 2018)
Coisa rara nos tempos atuais, pretendo ser, nestas palavras, um juiz imparcial. Já de cara tomo partido: declaro que gostei de O Pau do Brasil. Antes que venham com gracinha: se assim vocês preferem, já saíram nas redes as fotos, de oncinha e chicotinho, da nova ministra com esse mesmo sobrenome. Temos mesmo que engolir? Pois bem, pornográficos sejamos! Pero sin perder la ternura jamás.
Falamos com Wilson Alves-Bezerra, poeta autor de O Pau do Brasil, relançado neste último 22 de fevereiro pela Editora Urutau, em São Paulo.
André Nogueira: Wilson Alves-Bezerra, é um prazer falar contigo, gostei do teu Pau do Brasil e parabenizo tua coragem de, enquanto muitos se escondem na astrologia, tocar (como o urologista do Temer) no ponto mais sensível, mais crítico e nevrálgico da nossa falência nacional. E diagnosticou, antecipadamente (e mais profeticamente que os poetas-videntes), que o presidente – de tanto obstruir a Justiça; de tanto mandar o cacete descer; de tanto afagar o mastro no Palácio do Planalto – que o presidente acabaria, no fim do (longo?) túnel de sua vida aos 77, engasgado no próprio viagra, obstruído em seu mais caro, se bem que falido, interno e bruto produto humano em decomposição. No entanto, mesmo com mãozinhas tão atrofiadas, quando ele pega na caneta, faz estrago: a cada dia um novo URGENTE em caixa-alta, a cada semana uma reforma mais demolidora que a outra e, finalmente, com um só rabisco de sua canetinha: canhões, tanques e bazucas, prontos a fazer a sua presa predileta: o povo pobre, o pobre povo; e perfurar seus corpos, e penetrar sem mandado ou consentimento. É então que vemos: essa coisinha pequena, murcha e tão amargurada, é capaz – de estuprar – uma nação inteira! Com tudo isso, na sua tarefa de comentar esse desfile de horrores, o poeta tem um trabalho infinito: o Pau do Brasil, lançado há dois anos em sua primeira edição com 16 poemas, nesta nova versão ampliada (e como!) conta com um total de 54 poemas. Muita coisa aconteceu de lá pra cá, todos sabemos o quê. Mas fale algo sobre essa ampliação do livro, como ela se construiu a partir do primeiro O Pau do Brasil, em torno de quais fatos e de que maneira os responde.
Wilson Alves-Bezerra: Tamos fodidos e sabemos disso. Os demais estão fodidos e não se apercebem. A primeira edição, André, foi escrita ao longo de sete dias no longínquo ano de 2016. E como eu gostaria de contar uma história pessoana, de um heterônimo que me toma e me faz psicografar poemas. Não. Estava tomado de medo, de susto e de indignação. Foram os sete dias após o acolhimento do pedido de impeachment da Dilma Rousseff, foram dias de cão. Era preciso trazer do espanto, do espasmo algum encadeamento analógico. Ainda no meio daquela semana procurei o Tiago Rendelli, da Urutau, e disse que tinha um livro que precisava publicar, só tinha uns doze poemas. Mandei à merda os constrangimentos de poeta que revisa o texto por dias, semanas e meses antes de publicar e advoguei pelo lançamento urgente deste O Pau do Brasil. Um livro para fazer frente ao temor do golpe, da exceção, que passou a me tomar. A Urutau bancou a aposta e foi assim que surgiu este livro leproso, ao qual olha-se com olhar compassivo, mas do qual bem pouca gente se sente à vontade em ser surpreendida perto. Um livro que queria intervir no debate, articular um discurso poético sobre o presente.
De lá para cá, entendi que o livro era um work in progress. Antes mesmo do lançamento, escrevi um manifesto, que virou prefácio na segunda tiragem, também de 2016. Contrariando minhas expectativas, continuei escrevendo poemas, porque a história não parava de surpreender, a impassividade de tantos tampouco. Aí o livro foi crescendo, dando voz aos setores que têm a palavra no Brasil, em citações irônicas: a iniciativa privada, o executivo, o legislativo, o judiciário, os prefeitos escravocratas, enfim, um circo polifônico de horrores do qual não nos livramos. Era preciso ampliar o grotesco dessas falas com o enquadramento da poesia.
Trata-se também, nesta edição ampliada, de contar a história dos nossos horrores, mostrar que há uma progressão abissal, à qual é preciso fazer frente. Há portanto uma aposta, a aposta no efeito da literatura, e sobretudo da poesia, insidioso, sutil, que capta sujeito por sujeito e pode produzir efeitos. E também, é claro, uma aposta no poder da escrita da história.
André Nogueira: E o povo enfim tomou as ruas. Vuvuzelas em punho. Com a libido, extravazou-se um “Fora Temer” reprimido. Senti uma esperança de que, no carnaval, o país se libertaria pelo gozo. E logo pensei no Pau do Brasil. Mas de repente... de repente o Presidente, o Presidente do pau obstruído – obstou e (visto que não se pôde liberar o bloquinho do DOPS) mandou confiscar do povo a faixa, até mesmo a de fantasia, presidencial. Wilson Alves-Bezerra, é possível dizer que, nesse glorioso mas interrompido gozo do carnaval 2018, a repressão, no fim das contas, venceu?
Wilson Alves-Bezerra: Jamais, André. Se não, haveriam acabado a resistência, o sexo e a poesia. O que se reprime de um lado, o bom Freud já dizia, ressurge noutro lugar. Nosso decrépito Dorian Gray deve ter se contorcido ao ver em espelho sua imagem no desfile da Tuiuti. E arrisco dizer-lhe, querendo ou não, ele mandou que tirassem a faixa presidencial para o Vampirão ficar ainda mais parecido com ele. Quem não se lembra que ele – de cujo nome não quero me lembrar – dizia que sua foto na galeria dos presidentes seria também sem faixa presidencial? O que, sim, existe é um clamor pela repressão.
O totalitarismo treme diante da singularidade trazida pela arte e pela reflexão. As armas do Estado são letais, mas a arte, a infância, a loucura são aquelas que deixam o rei – broxa – nu. O que nos falta é canalizar o riso. Veja o poder liberador do desfile da Paraíso do Tuiuti, no Rio: a carnavalização, a ironia, o ritmo e os corpos desnudam o que havia para se mostrar ou dizer. A intervenção militar na semana seguinte não compõe de um modo curioso uma narrativa? Uma reação mais uma vez repressora? Mas isso é dialético e um movimento mais forte na direção contrária se seguirá.
André Nogueira: Ao fazer a leitura de teu livro, me lembrei de uns versos que li, faz pouco tempo, da poeta Luiza Romão em seu Sangria (2017). Peço licença para citar:
« (...)
eu queria escrever a palavra brasil,
mas a caneta
num ato de legítima revolta (...)
me disse ‘PARA
e VOLTA
pro começo da frase
do livro
da história
volta pra cabral e as cruzes lusitanas
e se pergunte
DA ONDE VEM ESSE NOME?’
palavra-mercadoria
brasil
PAU-BRASIL
o pau-branco hegemônico
enfiado à torto e à direito
suposto direito
de violar mulheres
o pau-a-pique
o pau-de-arara
o pau-de-araque
o pau-de-sebo
o pau-de-selfie
o pau-de-fogo
o pau-de-fita
O PAU
face e orgulho nacional
A COLONIZAÇÃO COMEÇOU PELO ÚTERO
matas virgens
virgens mortas
A COLONIZAÇÃO FOI UM ESTUPRO
(...)
olho pra caneta e tenho certeza
não escreverei mais o nome desse país (...). »
Pelo paralelismo entre teu livro e o da Luiza Romão, cada qual com sua primazia encarando a mesma massa de problemas, destrinchando e, é claro, repudiando toda essa injustiça, vejo pelos caminhos paralelos que vocês traçaram uma comprovação do que a intuição já aponta: nossa história – colonial, escravocrata, exploratória em último grau; genocida, etnocida e feminicida até os ossos – nossa história começou e nunca deixou de ser: um estupro. Na raiz do problema, no ato inaugural que nos fez Brasil, no teu livro e no Sangria, a mesma “entidade”: o Pau. Com uma só diferença: para o teu livro a castração também constitui um efeito repressivo da colonização, o Pau que nos foi arrancado, confiscado – ao tornar-se Brasil, ou seja, ao se converter em mercadoria e, como tal, meio de exploração, escravidão, estupro, morte. Ibirapiranga, Ibirapitanga, Orabutã: o pau originário, vermelho e não branco, que ao índio pertencia e à Mãe Terra. A alegria selvagem da liberdade, a força fecunda da criação, que permanecem sob o mira dos fuzis e tanques, estes sim, os falos mal-resolvidos. Como reconquistar o que foi perdido? Talvez pela antropofagia, numa promessa carnavalesca de que apesar de tudo (da censura, dos militares e toda forma de repressão) ainda é possível o gozo libertador – que, certamente, será algum tipo de ação revolucionária. Sangria traz um ponto de vista complementar, quem sabe, mas certamente ao invés, porque o que Luiza Romão propõe é uma inversão de perspectiva pelo olhar feminino: contar a história a partir do Útero: o útero da Virgem Mata, poderíamos dizer, que foi um só com Ibirapiranga, Ibirapitanga, Orabutã, antes que se impusesse o Pau (imposição que se reflete na história se repetir em ser contada segundo Ele). Por isso a revolta do Útero é sangrar, dar expressão à sua dor, sempre também um grito contra o sistema falocêntrico. Pelas semelhanças e pelas diferenças, resultaram dois livros deslumbrantes, que merecem ser lidos um em face do outro. Wilson Alves-Bezerra, o que pensas sobre isso? Estas questões já se apresentaram pra ti em algum momento?
Wilson Alves-Bezerra: Agradeço sua análise, André. O Brasil que somos é fruto do estupro dos portugueses às nativas, e logo às negras ou mulatas, e dos outros que se seguiram e que se seguem. Não há Brasil sem isso. O gesto de recusa do poema da Luiza Romão é exemplar, legítimo. O que faço com minha escrita é mostrar que se pode gozar de muitas formas. Gozar do poder ou gozar no poder. Por isso é que é fundamental saber onde estamos nesta cadeia. Se não, vai-se à rua bater panelas a quem te fode. E isso deve dar uma vergonha no dia seguinte... Por isso é que há que se lidar com o que nos é próprio e com o que queremos nos apropriar como nosso, culturalmente. Antes de o pau brasil virar mercadoria para exportação, ele é o tronco que nos brotou da terra. Em certo momento da parte 3 do livro, há um poema que se passa numa casa da periferia, onde estamos, pretos brasileiros, até que chega o Coltrane para bagunçar o coreto.
Mano Brown disse em entrevista recente que o sonho dele, na infância, era ser o Jorge Ben, mas que ele teve que ir fazer rap, e o rap é compromisso (Sabotage), e então foram trinta anos para ele poder fazer o disco dele de black music dançante que ele sempre quis. Por que é que o preto que somos, a mulher que somos, o indígena que somos, tem que se foder? Ou tem que ser sisudo para fazer frente a todos os estupros sofridos? Por que não pode dançar, mas no seu próprio ritmo, e não para fazer cena ao turista? O Pau do Brasil clama por outros jeitos de gozar. Um gozo libertador, mas não desmobilizador.
André Nogueira: Existem dores que doem na alma: “Infâmia!” – ela grita, antes de decolar como um cometa e, mais ao final das contas, como um fósforo apagando-se no universo dos abstratos. Nele, não duram muito os lampejos de indignação. Lembram-se às vezes de soltar um “Golpe!” na linha do tempo, entre o gatíneo e o horóscopo do dia. Mas existem dores – que doem – na carne. Não foi o azul do céu que se rasgou, mas o da carteira de trabalho! Nem um “rio de lágrimas” que escorreu, mas o marrom depositório de lama química e merda da Samarco! Em meio a isso, corpos humanos estraçalhados como nunca, nunca nenhuma harmonia cósmica vai reconciliar. É disso que mais gosto no teu O Pau do Brasil: a dor visceral, a justeza da revolta, coragem em dar nome aos bois, isso num tempo em que, para muitos poetas, a preocupação cotidiana é saber se a lua entrou em capricórnio. Por outro lado, não deixas de ser um mago e, além de tudo, acadêmico, e precisa-se de boa analítica, pra ver se compreendemos algo desse non sense que a classe jurídica tem expelido pelo excretor de seus autos processuais. Mesmo sem ler a orelha do livro eu teria descoberto tua profissão: Wilson Alves-Bezerra, como professor e homem de letras, chegou o momento em que falas sobre a literatura atual: de que modo, em tua opinião, os poetas estão respondendo, ou não estão respondendo, ao golpe? O que propõe O Pau do Brasil enquanto intervenção poética na realidade?
Wilson Alves-Bezerra: Querido André, o mercado nos fode. O poeta tem que ser simpático para vender seu livro, porque seu livro vai colado ao seu corpo. (Num pesadelo recente, vi um poeta que levava o seu livro à orelha, como a caneta do português, para facilitar a identificação entre autor e obra). O poeta tem que atingir o gosto médio, para conseguir os likes que vão fazer bombar o seu feice. Tem que cultivar sua rede, seus amigos, para ter quem o elogie nos lançamentos. E O Pau do Brasil é um livro leproso, eu já disse. Eu repito. E eu repetirei um milhão de vezes. Não advogo que seja um livro lindo, mas advogo que é urgente e leproso. Para ser lido em voz alta. Eu admiro quem se posiciona: a Hilda Hilst publicando suas crônicas incontornáveis no Correio Popular, de Campinas, nos anos noventa, e saudando seu público ao final: boa morte, boa missa. A grande contradição do nosso tempo é que o poeta, e o artista em geral, quer ser querido, quando deveria querer ser necessário.
André Nogueira: Um raio – em cheio! – atingiu o Jaburu. Tremeu na base a excelência? Sente, por acaso, dor na alma o desalmado? – pela infâmia, a traição mais miserável, pelo pedaço de podridão que, sabe-se lá, ainda bate dentro do peito – alguma dor, algum arrependimento possível? Tudo o que tem a dizer é: “Não renunciarei!” Pois bem. Deixem pra lá o coração, e tanto faz se no inferno espetarão a sua alma. O Brasil quer o seu corpo, Presidente, e não só isso... o Brasil quer – como em seu último jantar no Alvorada, na bandeja – o seu pau.
Roguemos pela sua saúde!
Muito obrigado, Wilson Alves-Bezerra. Um grande viva e sucesso a teu livro. O leitor o encontra aqui, no site da Urutau (vale a pena explorar o calátogo dessa bela editora independente!). Para encerrar, um último trecho de O Pau do Brasil:
“Ibirapiranga, Ibirapitanga, Ibirapitá, Orabutã, Arabutã são todos nomes de índio de um pau que já não há, de índios que não há. Um índio não é das Índias, não é bichinho, não é brinquedo, não é escravo, um índio é um índio é um índio. Quem quer um país aceita qualquer país e basta ter o nome de um pau? Um estrangeiro é o índio. À margem das cordialidades, um homem se ergue diante de uma mulher com suas pinturas e suas partes. Um índio é um homem é uma mulher com um rombudo não. O Pajé mastiga a seiva e está lívido; o pajé precisará de pajelança também; o cantor precisará de cantoria; a música que ele entoa precisará de outra música. Porque Exu acordou apavorado e prega a desobediência civil, para fazer caírem discursos e os traços da cara, e ninguém mais ser emasculado na terra com nome de árvore. Ibirapiranga, Ibirapitanga, Ibirapitá, Orabutá, Arabutã é tudo nome desse pau cortado. Índio sitiado por estradas, acossado por palavras. Tem as pedras, tem as lanças, tem os venenos, tem as ervas. Correm cutias, cipós, lencinhos, tostões. Não são indiozinhos, nem indiozões, nem um nem dois nem dia. Exu falou tá amarrado e na maloca se armou um auê. Seu grito foi escutado”.
Edição: Joana Tavares