Quando o pequeno barco de alumínio, daqueles que dá pra ter em sítio, começou a se aproximar da margem para nos pegar, a tensão tomou conta do rosto de José Benedito, o “Seo” Zé. Tudo porque a bateria da minha câmera tinha acabado e eu estava rapidamente trocando para não perder esse primeiro encontro com Maninho, grande companheiro de “Seo” Zé. “Espera aí que primeiro vou pegar umas minhocas”, gritou, de dentro do barco.
“Não falei que ele é gente boa” afirmou o octogenário Zé, antes mesmo de eu dar um bom dia a Maninho. Depois, descobri que as minhocas eram para o filho Arthur, que aguardava na ilha. Estávamos em Baixo Guandu, divisa de Minas Gerais com Espírito Santo, região onde o rio Doce chegou a níveis críticos por causa da estiagem meses antes da enxurrada de lama passar por ele.
A travessia foi em silêncio, só o pequeno motor do barco e uma roçadeira ao longe que teimava em roçar e desligar. Roçar e desligar. Em sua pequena ilha, Maninho parou o barco, “Seo” Zé, do alto de seus 81 anos desceu e ancorou a embarcação. A roçadeira já não fazia barulho. Maninho também não falava nada, só carregava a vasilha com minhocas e baforava um cigarro de fumo de rolo. Chegando na ilha, a roçadeira que teimava estava sob uma mesa no quintal e Ciganinho aguardava para voltar a trabalhar. Hélices empenadas por batidas em galhos e pedras, Maninho começa a arrumar e a falar.
A voz é firme, combina com o porte de Francisco Vicente Leite de Oliveira, o Maninho, que, de seus 52 anos de vida, passou 52 à beira do rio. Filho de pescador cearense com uma italiana, transmitiu para o filho Arthur o mesmo amor e respeito pelo rio que aprendeu em casa. Arthur é um grande parceiro, tem nove anos e é notável o carinho pelo pai, pelo rio e por um franguinho de estimação. Ambos viviam tempo integral na ilha, mas após o rompimento da barragem de Fundão e as consequências que a lama tóxica trouxe para a vida dos ribeirinhos, passam parte do dia na ilha e parte do dia na cidade.
“Minha história com o rio não é muito diferente do resto do pessoal não. Eu nasci dentro d´água, mas às vezes preciso sair dela para complementar a renda da pesca”. Disse que da ilha, quando não tinha pesca, tirava e vendia ovos, frutas, verduras. Seriam mais de 900 galinhas poedeiras e uma vara de cerca 30 porcos que completavam a renda da pesca, gerando um rendimento mensal de cerca de R$9.000. Maninho se emociona quando lembra que sua criação de frangos foi a zero após o contato com a água contaminada. “Disseram que era problema hepático”.
Para quem mora em uma ilha, são poucas as possibilidades de não ter contato com a água do rio. Nessa hora, Arthur chega sorridente e molhado. Maninho aponta “alá, tava tomando banho”. O garoto deixa a varinha de pescar e pega seu franguinho. Ele se diz hipnotizador de frango e a todo momento aplica no bichinho um daqueles golpes que só se aprende em artes maciais ou nas travessuras da vida, e o frango simplesmente apaga. Um pequeno peteleco e a ave volta como se nada tivesse acontecido. Maninho ri, visivelmente orgulhoso de ver que o filho que ele cuida sozinho está seguindo os passos do pai: interagindo com as criações, cuidando do terreno, pescando, nadando e respeitando o rio Doce. Me volto para o garoto e faço duas perguntas, ambas respondidas de pronto. “Desde que eu nasci”, rapidamente ele disse quando perguntei desde quando ele toma banho no rio Doce. A segunda foi sobre quem o levou no rio pela primeira vez: “meu pai” e sorri para Maninho. Tem coisas que só os pais percebem e nessa hora eu reconheci a sintonia que aquele sorriso significa.
Edição: Joana Tavares