A Eletrobras, responsável por um terço da capacidade de geração de energia do país, está ameaçada de privatização. A proposta do governo federal inclui a venda das 13 empresas subsidiárias, que prestam serviços de geração, transmissão e distribuição de energia em todas as regiões do país. São 233 usinas e 70 mil quilômetros de linhas de transmissão – cerca de 47% do sistema nacional.
A União detém 51% das ações ordinárias da Eletrobras, que dão direito a voto nas assembleias. Entre as justificativas para a privatização, os aliados de Michel Temer (MDB) citam a necessidade de aumentar a eficiência da empresa e de equilibrar as contas públicas. O mesmo pretexto é usado para privatizar aeroportos, rodovias, ferrovias e o petróleo da camada pré-sal.
Argumento frágil
Temer pretende arrecadar entre R$ 12 bilhões e R$ 20 bilhões com a privatização do sistema elétrico nacional. O valor é quase irrelevante se comparado aos R$ 124,4 bilhões de déficit primário em 2017 – resultado negativo nas contas do governo, sem considerar o pagamento dos juros da dívida pública.
Se a venda da Eletrobras não tira o país do vermelho, também não é consenso que a gestão privada irá aumentar a eficiência do setor. Engenheiro aposentado, com 36 anos de trabalho no setor elétrico federal, Antonio Goulart ressalta que a Eletrobras tem uma receita líquida anual de R$ 60,7 bilhões e um potencial de crescimento reconhecido mundialmente.
“Talvez seja o melhor sistema elétrico do mundo. Ele é altamente eficiente, com uma matriz energética renovável, como em nenhum outro lugar. Cerca de 50% da nossa matriz é renovável. Na média mundial, esse número não chega a 15%”, compara.
Goulart aposentou-se pela Eletrosul, subsidiária da Eletrobras que presta serviços no Paraná, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Mato Grosso do Sul. Com controle e participação em sete usinas hidrelétricas, 44 subestações e cerca de 11 mil quilômetros de linhas de transmissão, a empresa também é referência em energia limpa e renovável. Ou seja, não existe um prazo final para geração de eletricidade, porque recursos como a luz solar e o vento são considerados infinitos.
Ameaça antiga
Em 1997, a Eletrosul tornou-se um símbolo do assédio do capital internacional sobre a produção energética. Foi quando o então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) incluiu a empresa no Programa Nacional de Desestatização (PND). No ano seguinte, todo o parque gerador da Eletrosul passou a pertencer a outra empresa, a Centrais Geradoras do Sul do Brasil (Gerasul), que foi vendida ao grupo franco-belga Tractebel.
Foi a primeira geradora de energia privatizada na história do Brasil. O resultado global da venda foi equivalente a US$ 2 bilhões – ou R$ 6,6 bilhões, no câmbio atual. A Eletrosul foi desautorizada a gerar energia e teve as receitas reduzidas a um terço.
Mesmo com a onda de privatizações nos setores de telecomunicações, siderurgia, minas e energia, a dívida pública aumentou de 32%, em 1994, para 57% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2002.
Reserva de mercado
A iniciativa privada detém cerca de 60% da capacidade de geração de energia instalada no país. Dos 40% que continuam sob controle do Estado, 35% faz parte do sistema Eletrobras, que Temer deseja privatizar.
Na interpretação da diretora do Sindicato dos Trabalhadores na Indústria de Energia de Florianópolis (Sinergia), Cecy Maria Gonçalves, o governo FHC pretendia garantir uma reserva de mercado às empresas estrangeiras. “A Tractebel comprou com incentivo do governo, e ganhou na sequência o direito a aumentar a tarifa. Isso permitiu que, no primeiro ano, eles mandassem para o estrangeiro o mesmo valor que eles pagaram pelas nossas usinas”, analisa.
Seis anos depois, durante o primeiro governo Lula (PT), a Eletrosul obteve licença para voltar a gerar energia. E os números mostram que, sob controle do Estado, a empresa tornou-se novamente uma “mina de ouro”.
Alvo precioso
A Eletrosul comanda a operação de cinco hidrelétricas: uma em cada estado e duas em Santa Catarina. A maior delas é a UHE Governador Jayme Canet Junior, entre Telêmaco Borba e Ortigueira, no Paraná. O Complexo Eólico Campos Neutrais, no Rio Grande do Sul, é o maior da América Latina. A matriz energética é 100% limpa, e a potência instalada é suficiente para atender uma população equivalente a 12 milhões de pessoas.
“Nas nossas linhas de transmissão corre um feixe de banda larga, que permitiu inclusive as transmissões ao vivo dos jogos da Copa do Mundo [de 2014]”, acrescenta Cecy, que também atua como diretora de formação corporativa da Eletrosul. “Nós temos uma malha de banda larga gigantesca, e quem comprar [a Eletrobras] vai levar tudo isso de graça, no pacote”.
Direitos em jogo
O sistema Eletrobras emprega 24 mil pessoas, que também veem seus direitos ameaçados. O engenheiro Antonio Goulart lembra que a redução dos encargos para contratação de trabalhadores é uma demanda de setores que defenderam o golpe parlamentar e apoiam governo Temer. “A privatização das subsidiárias, agregada às mudanças na legislação trabalhista, vai trazer uma precarização enorme. Essas tentativas de redução de custos podem levar a uma baixa de qualidade, que é ainda mais preocupante para um serviço estratégico”, questiona.
Tarifa
Em ofício publicado em outubro de 2017, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) anuncia uma previsão de queda no preço da tarifa como efeito da venda da Eletrobras. Mesmo na estimativa otimista do governo, a redução não seria imediata e chegaria a apenas 0,11%: “Primeiramente deveria haver o processo de privatização, a posterior redução dos custos operacionais, a consequente realimentação do processo de benchmarking [práticas de melhora de desempenho] para, finalmente, haver a redução das tarifas ao consumidor”.
No entanto, as usinas da Eletrobras que estão sob o chamado “regime de cotas” geram 15% da energia elétrica do país com uma tarifa equivalente a um quarto do preço praticado no mercado. Conforme projeto de lei entregue à Câmara, o governo Temer pretende que essas usinas sejam transferidas ao controle privado e passem a cobrar o preço de mercado – quatro vezes maior que o atual.
“Nós temos a clareza de que a privatização aumenta a tarifa imediatamente. Isso já existiu na década de 90, e temos exemplos em vários países, como Argentina e Portugal”, ressalta Cecy Gonçalves. “Isso vai causar problemas para a indústria, para o comércio, para a vida das pessoas. Só vai beneficiar aqueles que estão querendo investir e lucrar aqui no Brasil”.
Resistência
No último dia 2 de fevereiro, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), derrubou uma liminar que barrava o projeto de desestatização da Eletrobras. Moraes atuou como ministro da Justiça do governo Temer até janeiro de 2017, e foi nomeado para o STF após a morte de Teori Zavascki. Há dez dias, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM), criou uma comissão especial para analisar o Projeto de Lei 9463, de autoria do Executivo, que estabelece as diretrizes da venda.
Esta semana, o Sinergia e a Intersindical dos Eletricitários do Sul do Brasil (Intersul) conseguiram suspender os efeitos da Assembleia Geral Extraordinária que encaminharia a privatização da Eletrosul. A liminar foi deferida pela 2ª Vara Federal de Florianópolis.
De acordo com o juiz Leonardo La Bradbury, responsável pela decisão, os acionistas minoritários da Eletrosul não tiveram acesso aos documentos pertinentes à assembleia, o que prejudicou seu poder de voto.
Além dos sindicatos de trabalhadores do setor elétrico, o Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB) tem participado das atividades de protesto e resistência à venda da Eletrobras e das subsidiárias. Um dos coordenadores do MAB no Paraná, Robson Formica afirma que privatização significa mais violações de direitos dos atingidos: “O lucro, em vez de ser socializado e distribuído através de serviços públicos de melhor qualidade, ou mesmo com uma tarifa mais baixa, acaba se revertendo para as próprias empresas”.
Formica observa uma mudança no perfil dos compradores. Na época de FHC, os investidores que estavam de olho no setor elétrico brasileiro eram estadunidenses e europeus. No governo Temer, a novidade é o interesse das empresas chinesas. O que não muda são os impactos para a soberania do país: “A energia e a água devem servir com soberania ao povo, e a riqueza gerada deve ser distribuída ao povo, e com controle popular”, finaliza.
Edição: Ednubia Ghisi