RESISTÊNCIA

O combate ao racismo religioso como luta política das religiões de matrizes africanas

Terreiros de candomblé e umbanda afirmam suas heranças em oposição a intolerância religiosa no Brasil

São Paulo |
- Roger Cipó

No Brasil, o racismo funciona como sistema estruturante das relações de poder, atua pelos traços fenotípicos, de modo que a cor da pele da pessoa define se a sua experiência social será menos ou mais violenta. Este tipo de racismo é resultante do ideal de branqueamento que a partir da segunda metade do século XIX se desenvolveu entre nós. Aliados a este ideal, os comportamentos racistas buscaram não apenas eliminar a presença física de negros e negros em nosso território, através do incentivo e favorecimento da imigração europeia, mas também apagar quaisquer heranças civilizatórias africanas.

Os jornais do final do século XIX, os boletins de ocorrência policiais e até mesmo a produção literária da época registram os atos de violência e perseguição aos territórios sagrados de resistência negra. Daquele período até os dias de hoje, os terreiros de candomblés e de umbandas vêm tendo apenas alguns momentos de paz, em razão do combate travado pelas forças que emanam de uma ação combinada entre sujeitos de culto e crenças ancestrais e a centralidade dos valores da vida comunitária africana, que estão presentes nestes territórios sagrados.

Em outro artigo publicado aqui falamos sobre a história da perseguição às religiões brasileiras de matrizes africanas, marcada pelo racismo estrutural que conforma o processo de formação da sociedade brasileira. Pontuamos também os interesses do Estado com segmentos religiosos que  defendem um projeto político religioso que impacta diretamente os direitos humanos e, por consequência, a própria democracia, aprofundado pelo golpe de 2016. 

Neste sentido, a reflexão para o 21 de janeiro, Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, diz respeito à maneira como as comunidades religiosas de matrizes africanas são duramente atacadas por preservar em seus territórios sagrados a força da ancestralidade. Com esta finalidade, elas articulam a história de uma cultura de resistência que por sua essência é combativa, não defensiva. Combatem o racismo e a intolerância, afirmando heranças que têm sido negadas na educação escolar, mesmo após o advento da Lei 10.639/03 que modificou a Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional (LDBEN) para estabelecer a obrigatoriedade do ensino da cultura afro-brasileira e africana no currículo escolar. Dessa maneira, os terreiros de candomblé e umbanda mantêm em seus territórios saberes e práticas socioculturais que desafiam não apenas o currículo eurocêntrico e eugenista da escola brasileira, mas também a violência física e simbólica, que atingem seus  adeptos e seus espaços, em forma de incêndios, apedrejamentos, destruição de objetos sagrados, exposição a vexatória e até assassinatos.      

O último levantamento do Ministério dos Direitos Humanos afirma que, entre janeiro de 2015 e o primeiro semestre 2017, o Brasil registrou uma denúncia de intolerância religiosa a cada 15 horas. Estados de São Paulo, Rio e Minas Gerais lideram casos de intolerância, colocando as religiões de matriz africana no ranking das vítimas. O disque 100, canal que reúne denúncias, recebeu 1.486 relatos de discriminação religiosa no período. Destes, 39% são denúncias de intolerância contra religiões de matriz africana. Porém, se considerarmos o cenário nacional, são dados subnotificados por diversos fatores. Sobretudo, em razão da descrença de que o Estado possa de fato utilizar o seu aparato jurídico e policial em defesa desse segmento religioso. 

Ao apresentarmos estes números, querermos evidenciar que nenhum outro segmento religioso sofre tamanha agressão e encontra tanta resistência em nossa sociedade. Logo, se faz urgente e necessária a compreensão de que o que motiva essas violências é o fato delas serem religiões constituídas por pessoas negras que mantém um legado de cultura e resistência dos seus antepassados, mulheres e homens africanos, que aqui foram escravizados. Salientamos, pois, que atualmente quando se trata dessas religiões, o termo “intolerância religiosa” tem se mostrado insuficiente para nomear a complexidade do sistema de opressão sobre essas crenças religiosas de origens negras em nosso país.

A intolerância religiosa se caracteriza assim como a expressão do racismo. Um crime sutilmente acomodado historicamente à sociedade brasileira, que inferiorizou e marginalizou as expressões de crença de africanos e seus descendentes. Os nossos terreiros queimados, igbás quebrados, a agressão a pessoas que vestem uma roupa e insígnias sagradas da sua religião em locais públicos, os linchamentos verbais na internet e redes sociais de praticantes da fé, traficantes expulsando sacerdotes das suas casas ou assassinados, crianças proibidas de assistirem aulas na escola, Mães e Pais de Santo que têm a saúde agravada ao serem expostas às situações violentas, constituem-se como a materialização violenta desse processo. 

O racismo religioso quando não mata, deixa marcas profundas na luta do povo preto pela sobrevivência e contra a exclusão social, política e econômica. Vivemos em um país onde a liberdade de crença religiosa está cerceada, e um golpe político midiático acentuou a crise estrutural do capital e aprofundou a barbarização das relações sociais, impactando diretamente as chamadas minorias. Como Guimarães Rosa, o Povo de Axé sempre soube que “o que  a vida quer da gente é coragem” para buscar formas de unidade na luta por direitos e ampliar a construção de uma  cultura política anticapitalista e combativa de todas as formas de racismo.

Nesse contexto, compreendemos os territórios onde as comunidades de terreiros estão alocadas, não apenas como espaços de manutenção do sagrado ancestral, mas também de disputas políticas e ideológicas. Assim, a formação cultural e social dos seus componentes torna-se alvo das ações desenvolvidas e ali floresce tudo aquilo que a história e o Estado brasileiro negaram à população negra durante séculos. É um espaço com uma estrutura coletiva que pensa, articula e constrói. Esses territórios têm um enorme potencial de organização social em prol da manutenção de um legado histórico de luta e resistência ancestral pelos direitos sociais. Em diversas ações cotidianas,  seus adeptos  afirmam uma cultura intransigente, que não se molda ao ideal de branqueamento e às formas de opressão do capital.

*Professor da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e Babalorixá do Ilê Axé Ogunfunmilayo em Contagem-MG

**Jornalista, Umbandista e Especialista em Teologia das Religiões Afro-Brasileiras

Edição: Simone Freire