O Estatuto da Cidade (EC), lei federal 10.257/2001, festejada no mundo inteiro, prevê punições para a propriedade ociosa que não cumpre a função social prevista na Constituição Federal (CF) de 1988. Dentre as punições previstas, a mais importante é o IPTU Progressivo no tempo.
Entidades nacionais que lutaram pelo EC, que regulamenta a CF de 88, pretendiam, com sua aprovação, combater o enriquecimento de proprietários de terra que se valorizam, às custas do investimento de toda a comunidade. Ou seja, o crescimento da cidade e, em especial, o investimento público em melhorias urbanas (assim como a legislação de uso do solo) tem a propriedade de transferir renda para os proprietários.
A retenção de terras urbanas ou urbanizadas é um dos grandes negócios das elites locais e contrasta com a carência de moradia social. Complementa a estratégia desses especuladores, ampliar os limites da expansão urbana – por meio de lei, nas Câmaras Municipais – inserindo na cidade verdadeiras fazendas, terras que passam de rurais para urbanas condenando as cidades à ocupação dispersa.
A ocupação urbana dispersa acarreta o encarecimento da cidade, isto é, o aumento do custo social da implementação de infraestrutura de água, esgoto, iluminação pública, coleta de lixo, equipamentos sociais de educação, saúde, lazer etc. Mas o maior impacto da urbanização dispersa se dá no alongamento e no tempo das viagens diárias. Enquanto alguns poucos ganham rendas, sem qualquer esforço, com o investimento público, outros (a maioria) pagam mais caro pelo desenvolvimento urbano. E outros, ainda são expulsos da cidade.
O grande movimento social e acadêmico que propugnou pela aprovação do IPTU progressivo, pretendia que o poder público se apropriasse dessa renda gerada pelos investimentos públicos ou coletivos, como se faz em muitos países do capitalismo desenvolvido, punindo a retenção especulativa de terras e forçando a ampliação de sua oferta no mercado imobiliário. Não se tratava de nenhuma radicalidade socialista, mas simplesmente de se fazer cumprir a função social da propriedade e a função social da cidade. Entender que essa é uma construção coletiva que deve dar oportunidade de moradia a todos seus moradores.
Uberlândia, importante cidade do estado de Minas Gerais, repete os problemas de grande parte das cidades de porte médio no Brasil: expandiu-se de forma exagerada a partir do último boom imobiliário brasileiro (2009/2014) e do Programa Minhas Casa Minha Vida (PMCMV). Apesar da impressionante retenção de terras servidas de infraestrutura, as moradias populares do PMCMV são jogadas para a periferia da periferia – verdadeiro depósito de pessoas, gerando viagens longas em tempo de aquecimento global. E mais, há perto de 20 ocupações de terra: grande parte dos trabalhadores pobres são constrangidos a ocupar terra ilegalmente, pois, no reino da fartura fundiária não lhes sobra um pedacinho onde abrigar a família. Nem Estado e nem mercado reconhece sua óbvia necessidade. Gostariam que eles evaporassem após a jornada de trabalho.
O IPTU, instrumento que poderia tornar a cidade socialmente mais justa, e ambientalmente mais equilibrada, se fosse dirigido a evitar a retenção da propriedade ociosa, foi remetido ao campo da disputa partidária. O prefeito eleito (Odelmo Leão Carneiro, do PP) se vangloria de ter derrotado o "IPTU do PT". E o que é pior, muitos setores das camadas populares deveriam estar assustados com a ameaça de aumento de impostos, ameaça potencializada por uma mídia que age também como partido da elite.
Para coroar essa sucessão de negação da racionalidade técnica, da justiça social e da sustentabilidade ambiental tomei conhecimento de um estudo de um advogado, Dr. Igino Marcos da Mata Oliveira, que coloca em dúvida toda a cadeia de registros de propriedade da terra de alguns dos principais representantes do poder local em Uberlândia. Recomendo a leitura desse trabalho.
Conhecendo a realidade das cidades de porte médio é muito difícil não dar razão a Raimundo Faoro que escreveu os dois volumes do magistral "Os donos do poder".
*Ermínia Maricato é professora da pós-graduação da FAU/USP e professora visitante da Unicamp. Foi secretária da Habitação e Desenvolvimento do Município de São Paulo e ex-ministra adjunta do Ministério das Cidades. É uma das coordenadoras do Projeto Brasil Cidades
Edição: Joana Tavares