Rio de Janeiro

CRISE DA UERJ

Artigo | O significado racista por trás da mudança da faculdade de direito da UERJ

A universidade foi a primeira a abraçar a luta histórica por reparação através da pioneiras cotas raciais

Rio de Janeiro (RJ) |
A UERJ é considerada uma das universidades mais negras do país
A UERJ é considerada uma das universidades mais negras do país - Divulgação

Há aproximadamente uma semana, fomos surpreendidos com a notícia veiculada pela mídia de mudança da Faculdade de Direito da UERJ para um prédio cedido pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ). Embora a esmagadora maioria dos corpos docente, discente e de servidores da faculdade não ter sido sequer informada sobre a proposta, as tratativas por parte de um pequeno grupo de docentes e a presidência do TJRJ já estavam avançadas e a transferência dada como certa, em uma clara demonstração de autoritarismo antidemocrático e antirrepublicano.

Qual seria o motivo de não apresentar a proposta para debate junto à comunidade acadêmica, mesmo enquanto se verificava a viabilidade da mesma? Entendemos que a mudança proposta certamente levantaria resistência de parte significativa desta e que possui um intrínseco significado racista, patrimonialista e reacionário.

Racista porque em uma sociedade de classes pós-escravocrata, racialmente estruturada, a UERJ foi a primeira universidade a abraçar não só a luta histórica dos movimentos negros por reparação através da pioneira instituição de cotas raciais, como a abrigar grandes nomes da intelectualidade negra em seus corpos docente e discente, sendo palco de importantes debates e produção de conhecimento negro. E mais: esta sempre foi uma universidade pensada pelos e para os trabalhadores – a primeira a possuir um curso noturno e uma faculdade de formação de professores, mudando a tradicional disposição das cargas horárias para abrangê-los.

Sem dúvidas, trata-se de uma das universidades mais negras do país. Entretanto, a mudança não garante a continuidade do já mitigado sistema de cotas raciais – pelo menos não como conhecemos: muitos na Faculdade de Direito historicamente foram e são contra as cotas, sobretudo as raciais, e as inúmeras propostas de alteração na forma de financiamento da faculdade não incluem as especificidades dos cotistas nem a garantia de assistência estudantil ampla, o que também significa um ataque contra a política estatal de cotas a médio e longo prazo.

Ainda, por diversas vezes ouvimos dos professores e estudantes que defendem a mudança que devemos manter a chama acesa (seriam os alunos cotistas o combustível necessário a ser consumido para mantê-la acesa?!). Além disso, a Faculdade de Direito ainda não implementou a mudança curricular para contemplar a lei 10.639, e se esta mudança se efetivar, a tendência, ao subordinar-se ao Tribunal, é de uma faculdade cada vez mais técnico-burocrática, onde não haverá mais espaço para a tão pleiteada mudança epistemológica na grade curricular, que só poderia ser alcançada através do tripé: ensino-pesquisa-extensão, que estarão também com os dias contados.

Patrimonialista porque dentre as inúmeras e diversas propostas deprivatização da faculdade – que partem deste mesmo grupo que pretende a atual mudança – estaremos vendo prevalecer um processo inédito do capitalismo periférico: a privatização da faculdade pelo próprio Estado a partir de um setor privilegiado na crise – o poder judiciário – privatizando o desprivilegiado – a educação, caindo como uma luva no momento político atual do país e entregando a Faculdade ao bel-prazer de uma elite historicamente branca, burguesa e reacionária, que desde o golpe vem se colocando como protagonista dos eventos políticos do país e que tem alergia ao povo brasileiro e ao projeto de uma Universidade popular e socialmente referenciada. Assim, sem nenhuma cultura política progressista ou coletiva, o Judiciário tem se especializado em atuações individualistas e com forte caráter de classe, reafirmado pelas inúmeras e recentes decisões judiciais desfavoráveis ao povo (como o amplo apoio às Reformas Trabalhista e Previdenciária) e racistas (como as corriqueiras decisões proferidas pelo TJRJ fartas de seletividade penal e criminalização da pobreza – vide o último julgamento do HC que negou a liberdade para Rafael Braga).

Reacionário por que esta mudança busca, em última instância, eivar a Faculdade de Direito de senso crítico, sobretudo interdisciplinar e revolucionário, ao pretender desmembrar a Universidade e excluir seus setores mais críticos na produção de conhecimento, como os departamentos de Teoria e Filosofia do Direito e Direito Penal (Criminologia Crítica) dos processos decisórios e da grade curricular a longo prazo. A separação física impedirá que os alunos de Direito tenham acesso diário às bibliotecas dos outros cursos, aos grupos de pesquisa, às atividades de extensão e aos seminários, debates e palestras diariamente abrigados no Campus Maracanã. Tal distanciamento é prejudicial para a tão importante formação política dos estudantes e construção do seu senso crítico, o que certamente será dificultado no interior de um Tribunal.

Neste sentido, é importante ressaltar que a história recente de desmembramento das Universidades Públicas remonta à ditadura empresarial-militar, quando para evitar a organização do movimento estudantil e de importantes sindicatos de técnicos e professores, diversas universidades sofreram o desmembramento estratégico que sempre envolvia, dentre outras coisas, separar fisicamente as diversas faculdades de Ciências Sociais e Humanas, evitando a perigosa interdisciplinaridade crítica e a integração conjunta daqueles movimentos que poderiam colocar em xeque a própria ditadura.

A UERJ sobreviveu a esse processo com a vantagem de possuir sua faculdade de direito em conjunto com os cursos de Filosofia, História, Ciências Sociais e Serviço Social, o que através da pesquisa e da extensão possibilitou a construção de uma relação entre a práxis crítica e jurídica em conjunto com movimentos sociais, um diferencial em relação às outras faculdades de direito tradicionais no país.

Outro aspecto a ser considerado é que o mesmo grupo de professores que defende a mudança, defende a implementação do modelo estadunidense nas universidades brasileiras, o que, novamente, remonta ao modelo proposto pela ditadura empresarial-militar, que há muito tenta se impor, mas é constantemente bloqueado pela resistência popular: coibindo o protesto, reforçando a hierarquia e a autoridade; enfatizando a importância de racionalizar a universidade, organizando-a em moldes empresariais, e privilegiando para isto a autonomização e o desmembramento das faculdades, a privatização do ensino e os fundos de financiamento privados. A defesa do modelo norte-americano – tanto de gestão política e econômica para o país, quanto de gestão da educação universitária – que busca solucionar crise estrutural do capitalismo com choques de neoliberalismo, já demonstrou sua falência e é inadmissível para nós. Ela só gera um aprofundamento da própria crise econômica e humanitária e é alarmante que o modelo de financiamento estudantil norte-americano possa ser a próxima bolha econômica do país.

Se não fosse isso, os professores que articularam a mudança não o teriam feito sem nenhuma consulta à comunidade acadêmica, temendo exatamente estas denúncias por parte da intelectualidade proletária que – para a infelicidade deles – compõe o quadro de servidores, docentes e discentes da universidade, ainda que sua barganha envolvesse a força de trabalho do corpo docente, a mudança do local e talvez dos postos de trabalho/demissão de grande parte dos servidores e terceirizados da faculdade. Este processo não só fragiliza, como contribui para a falência da construção de uma cultura política democrática no país.

A desculpa para essa atitude golpista e visivelmente antidemocrática e antirrepublicana? O pragmatismo “da solução para a crise” de instalar a faculdade ao lado do TJRJ para alunos e professores que em tese ficariam mais perto de seus estágios e trabalhos, desconsiderando os inúmeros fóruns regionais e a segregação espacial que atinge o povo negro. Vale ressaltar que a localização na zona norte se faz mais inclusiva que a no centro.

Esta breve nota busca trazer à reflexão outros elementos que estão em jogo com a mudança. Entendemos que o racismo estrutural é parte integrante da sociedade e sua propagação independe das intenções e ações conscientes dos atores envolvidos – portanto não estamos chamando de racistas aqui qualquer ator deste processo, e sim chamando atenção para um significado estrutural mais amplo do mesmo, onde os estudantes negros não saiam mais uma vez silenciados e excluídos do processo histórico. Se um dia a Faculdade de Direito da UERJ realmente vier a se submeter ao Tribunal – cenário que nos parece próximo, qual será o espaço para o ensino-pesquisa-extensão críticos, interdisciplinares e racialmente referenciados? O que escondem as boas intenções dos juristas, discentes e docentes que defendem a mudança, a privatização e as atuais reformas trabalhistas e previdenciárias? Por que os trabalhadores e os alunos negros da faculdade e da universidade como um todo não foram convocados a participar desse processo com amplo debate e discussão interna?"

*O Coletivo Negro Patrice Lumumba (CNPL) reúne estudantes negras e negros da Faculdade de Direito da UERJ, em sua maioria cotistas. Atua na defesa de direitos humanos da juventude negra, favelada e periférica de todo o Estado do Rio de Janeiro, sobretudo da região metropolitana e baixada fluminense. Todos seus membros são jovens negros que convivem diariamente com a segregação espacial, o racismo estrutural e institucional dentro da universidade e no sistema de Justiça, e que pretendem a transformação desta realidade.

Edição: Vivian Virissimo