Mais do que nunca é preciso ter posição firme e intransigente na defesa do processo do povo venezuelano. Diversas pessoas têm se manifestado sobre a Venezuela. Muito rapidamente o país tão desconhecido se converteu em um grande conhecido por todos. Não bastasse isso, muitas figuras do campo progressista o fizeram para corroborar com as denúncias noticiadas diuturnamente pela grande mídia, partidecos da direita, parlamentares e o governo golpista.
Obviamente que não escrevo para contestar as tantas posições que julgo equivocadas – e até com certa carência de informações (por pura preguiça mental). Daí que vou no “atacadão” e pontuar algumas contestações às inverdades e absurdos sobre o processo em curso.
1) É uma ditadura com outras roupagens?
As ditaduras foram – e são – regimes de força caracterizados pela ruptura com as liberdades democráticas, o fechamento (total ou parcial) do sistema político, e a ascensão das forças autoritárias para cumprir com a missão histórica das democracias. Não é uma confusão. As democracias “formais”, ou “burguesas”, são os sistemas que permitem – e garantem – que minorias sociais sejam maiorias políticas.
Por exemplo, a democracia é o cenário em que os banqueiros, industriais e latifundiários dominam o parlamento e o executivo, mas são uma minoria na sociedade. Quando o sistema criado para funcionar dessa forma tem uma mudança a partir da construção de maiorias políticas com maior proporção com as maiorias sociais - como os governos populares com maioria de trabalhadores, camponeses e pequenos empresários - e isso se apresentou como uma expressão da realidade, os setores que perderam o poder se insurgiram e patrocinaram regimes de exceção em que o próprio sistema político e a democracia foram fechados.
Não é o que ocorre na Venezuela. Lá, o sistema político tem uma maioria popular (trabalhadores, camponeses, setores médios e forças armadas) no governo e que foram eleitos – na eleição mais vigiada e controlada do mundo (ganha de longe dos EUA, França, Itália, Alemanha, Espanha, etc). Mas os setores minoritários na sociedade – grande burguesia, latifundiários, banqueiros e classes médias altas – conquistaram uma maioria no parlamento. O impasse ficou evidente. Mas como não há parlamentarismo por lá, essa minoria do governo no parlamento não significa nada além de não ter força para encaminhar projetos.
Ou seja, essa maioria parlamentar garantiu à oposição uma capacidade inédita para criar uma política de travamento do governo: não haverá governo, mas sim crise até o Maduro cair.
Mas a oposição não se contentou com essa interdição. Resolveu, com apoio dos EUA, Colômbia, México, Espanha, Inglaterra, Argentina e desde o ano passado, do Brasil, criar uma “força tarefa” para varrer o “chavismo” da cena venezuelana. Se alguém tiver dúvida sobre as razões para isso, basta fazer uma continha. A Venezuela é a maior detentora de reservas de petróleo provadas do mundo, com 298.3 bilhões de barris, sendo que em 2004 o volume era de 79.7 bilhões de barris. Por muito menos o Iraque, Kwait, Líbia e outros pagaram um alto preço. E o petróleo na Venezeula, a partir do governo chavista, é controlado pelo Estado sendo gestado quase totalmente pela estatal PDVSA. Eis o que, o resto é resto.
2) A oposição foi silenciada pelo “regime”?
Dos absurdos ditos sobre a Venezuela esse é o que mais evidencia uma preguiça mental em pesquisar ou um uso consciente de dados falsos. Não tem país republicano com mais jornais diários, canais de TV, revistas e outras publicações diárias nas mãos das oposições. Desafio lançado para alguém encontrar um país, um único, qualquer um, com mais empresas de comunicação fazendo um papel diuturno como oposição explicita (não vamos nem considerar aqueles que o fazem timidamente). Na dúvida, basta pesquisar. Nem vou elencar aqui os veículos para não alimentar mais views. Mas para ajudar, aqui podem ser encontrados: http://www.guiademidia.com.br/jornais/america-do-sul/venezuela.htm
3) Lideranças oposicionistas presas?
Não entendo a questão sobre esse tema. Leopoldo Lopes foi processado por incitar, dirigir e construir as “guarimbas” com mais de 40 mortos. O fez conscientemente. De um líder regional inexpressivo foi alçado a “preso político” e liderança nacional. Igual a ele o Ledesma, ambos com prisão domiciliar com restrições de atuação política e que desrespeitaram essa medida de forma proposital.
Serviram a uma linha de “esticar a corda” para criar factóides diários e chamar a atenção da opinião pública internacional. A oposição lá passeia em carro aberto, viaja pra Bogotá, Brasília ou Miami quando quer, é financiada abertamente por organizações internacionais – Usai, e controlam grandes meios de comunicação.
4) A Constituinte foi um golpe?
Diante desse cenário de impasse – direita com maioria no parlamento, hegemonia (não confundir com maioria) na mídia e uma ampla coalizão internacional na retaguarda diante da esquerda com o governo, as Forças Armadas leais a Constituição, maioria nas ruas e nos setores organizados - os dois lados não conseguiam avançar. A direita não cresce em força de massas, apenas cria todo santo dia “atos de visibilidade” midiática, tudo orquestrado, para que essa correlação de forças seja alterada a partir da pressão internacional dirigida pelo Pentágono (Washington só assiste pela CNN) e a esquerda vive os dias a reconstruir os danos causados pelos “atos” golpistas.
De um lado um campo que quer o “quanto pior, melhor”. Ou seja: crise política, econômica, social, etc. para que o governo caia em algum momento. Por isso são contra qualquer diálogo, acompanhamento internacional de figuras notáveis e financiam os mercenários para jogar bomba em tudo o que representa o Estado e o governo: de tribunais a sedes de escritórios regionais, caminhões com comida a centros de distribuição de alimentos, entre outros.
Diante desse quadro, o que fazer? A direita diz: renúncia já ou as armas.
Os setores moderados dizem: tudo, desde que dentro da “legalidade democrática”.
Os esquerdistas minoritaríssimos: por um levante dos trabalhadores (contra o Kerensky, ops, Maduro).
O que Maduro e os lutadores decidiram: apelar para um artigo da Constituição Venezuelana – que você pode não gostar, nem concordar, mas deve respeitar – e convocou uma Constituinte via eleições soberanas. A oposição ficou atônita – e num primeiro momento anunciou que participaria. Posteriormente decidiu pelo boicote para não legitimar uma iniciativa de massas – porque ali a maioria internacional e dos mercenários pagos não suportaria a força do processo.
E elegeu com 42% dos votantes uma Assembleia Nacional Constituinte. Curiosamente é o mesmo percentual de ingleses que votaram no Brexit (51%). Nos EUA as votações ficam na casa dos 63%. Isso sem ameaça a vida de ninguém, como contra os votantes do dia 30 em todo o país sulamericano.
O governo apostou na capacidade do povo de construir um caminho para a paz. Que seja de aprofundamento das reformas para democratizar a renda, a cultura, educação, o trabalho, os direitos elementares e superar o quadro secular de dependência do petróleo – herança da elite mais sangue-suga da nossa América do Sul (e olha que a competição é fortíssima).
5) "Não podemos abrir mão da democracia"
Isso é uma construção dos setores da oposição e dos ingênuos. Como é possível romper com a democracia com 42% dos votantes? Com auditoria? (repito que se trata do sistema eleitoral mais controlado do mundo!). Nada de denúncias como na Flórida na eleição do Bushinho.
Mas apareceu uma denúncia de um dos donos da empresa de um dos sistemas afirmando que não foram os 42%, mas menos. E quem é ele para saber todos os dados dos votantes? Um empresário muito preocupado com o povo venezuelano, né? É preciso muita manobra intelectual e manipulação dos fatos para caracterizar um ato democrático como anti-democrático. Haja engenharia.
Já vi por ai alguns dizendo “mas o sistema privilegiou os partidários do Maduro”. Não há restrição de votantes ser desse ou daquele partido, isso é uma dedução por saber de ante mão que a oposição boicotou – se ausentou do processo – e portanto, não estará representada entre os eleitos. O resto é firula.
6) Se não é ditadura, o que é isso?
Isso é luta de classes. Não é o desejo de ninguém lá que ocorresse esse cenário de acirramento, mas dele não se pode fugir. Diante de uma direita ultra-conservadora, que queima gente viva, pregando o "quanto pior, melhor", patrocinando mercenários, financiando boicotes econômicos, bloqueando o pagamento de impostos, queimando suprimentos públicos emergenciais e promovendo uma guerra econômica, tudo com o apoio econômico, político, ideológico, tecnológico, militar e do aparato conspirador da CIA para isso. Não se responde a guerra com a outra face. Isso se converte em derrota certa, e sem luta.
Ali a saída é apostar na força criativa do povo. Gostem ou não os “democratas” daqui e de lá. A oposição boicotou a Constituinte e agora terá que apostar ainda mais na radicalização das “ações” dos mercenários, e caberá ao governo cuidar de colocá-los na condição de obedecer a democracia ou ir em cana.
7) Mas se é tão democrática, porque tanta gente de esquerda é contra?
Por ilusões sobre os processos reais de luta, por apego formal à democracia (como se ali a oposição a respeitasse) e por erro de análise política mesmo. Setores que costumeiramente estão bradando em nome do marxismo, mas invariavelmente se colocam ombro-a-ombro com as forças mais conservadores mundo afora. Vide o apoio aos neonazistas na Ucrânia dentre centenas de exemplos que prefiro evitar.
A esquerda “ursinhos carinhosos” desmerece que na América Latina – toda ela – tem classes dominantes antidemocráticas, antinacionais e antipopulares. São contra tudo o que é de interesse das amplas massas, jogam no lixo as conquistas democráticas, torturam, dão golpe e não tem qualquer traço republicano. Salvo no discurso. E esses setores seguem com a linha de defender uma democracia imaginária como se os regimes democráticos não fossem influenciados – e determinados – pela temperatura da luta de classes, e lá, como naquele Chile rebelde, na Nicarágua insurgente, na Guatemala popular, os democratas foram empurrados para um cenário de radicalização da ação golpista e coube a eles – os revolucionários – a defesa intransigente da democracia. Com fazem agora as forças populares e o governo da Venezuela.
Esses são os fatos. Passar por cima da dura realidade é uma escolha cínica, que por opção – ou ignorância - desconhece a natureza das elites latinas, o alcance da ação imperialista e a necessidade de buscar saídas apostando no povo em luta, como o fazem o bravo povo venezuelano, especialmente os mais simples e pobres. Não há outro caminho para quem só tem a luta pela frente: lutar pela vida, por um projeto nacional, democrático e popular.
*Ronaldo Pagotto é advogado e membro da Consulta Popular
Edição: Luiz Felipe Albuquerque