A Medida Provisória (MP) 759, editada pelo governo golpista de Michel Temer (PMDB) no final do ano passado, está no centro das preocupações de movimentos sociais do campo e da cidade. Prestes a ser apreciada pelo Congresso Nacional, com votação agendada para o próximo dia 26, a medida trata da regularização fundiária no país e já recebeu 732 emendas que sugerem alterações no texto, dada a polêmica que circunda o tema.
A crítica central à proposta recai sobre a alteração na forma como passam a ser outorgadas as terras públicas: em vez de uma concessão – dada, por exemplo, a agricultores – para que a terra possa ser usufruída com vistas ao cumprimento de sua função social e de forma hereditária, como ocorre hoje, o governo passa a dar uma titulação que, entre outras coisas, reduz os compromissos que o posseiro precisa assumir com a terra e permite que o lote seja vendido a terceiros. A MP também faculta a vistoria que precisa ser feita para a comprovação do cumprimento das obrigações por parte do posseiro e concede anistia a desmatadores e grileiros.
Já na área urbana, a medida flexibiliza a regularização de loteamentos e condomínios fechados de alto padrão e extingue o licenciamento ambiental diferenciado para áreas consideradas de interesse social. Também revoga os dispositivos que obrigam loteadores irregulares de terras públicas a adotarem medidas corretivas, repassando essa competência ao poder público, que fica impedido de ser ressarcido pelo dano.
A MP 759 altera pelo menos 18 leis brasileiras, incluindo pontos da Constituição Federal de 1988. O governo tem dito que a medida seria uma forma de beneficiar as famílias que ainda não possuem terras e que por isso estão impossibilitadas de acessar políticas públicas relacionadas à agricultura familiar e à assistência técnica.
No entanto, críticos da proposta afirmam que a MP caminha no sentido contrário. Para o deputado federal Edmilson Rodrigues (PSOL-PA), a medida levaria ao processo de reconcentração fundiária e ao aprofundamento dos problemas referentes ao uso do território brasileiro.
“Temos 88 milhões de hectares de terra – isso é maior que muitos países do planeta – que podem se tornar em breve propriedade privada do camponês, ficando disponibilizados à saga do mercado. Não há capital mais especulativo e mais sanguinário que o capital imobiliário. Teremos aí o fim de uma política de reforma agrária”, criticou o parlamentar durante entrevista coletiva concedida à imprensa na Câmara dos Deputados nesta terça-feira (11). O assunto foi tema de um grande debate no plenário da Casa, mobilizando diversos atores públicos que atuam na área.
Desnacionalização
Rodrigues destacou ainda que as modificações na política de concessão de terras tendem a impulsionar o processo de desnacionalização do solo brasileiro porque facilitam a compra dos lotes por empresas multinacionais. Atualmente, o país tem 2,8 milhões de hectares de terra nas mãos de estrangeiros, sendo cerca de 25% de portugueses e 13% pertencentes a japoneses. O Centro-Oeste, por exemplo, tem 31% dos 2,8 milhões de hectares de terras em mãos estrangeiras, sendo que 79% são portugueses. Os dados são do Instituto Nacional da Colonização e Reforma Agrária (Incra).
“Se essa MP for aprovada com as distorções que tem, em breve, possivelmente nós teremos a verdadeira casa da Mãe Joana”, ironiza Rodrigues.
Desigualdade
Para movimentos populares que atuam na questão do direito à terra e ao espaço urbano, ao oportunizar a ação de especuladores, a MP tende a reforçar as desigualdades sociais no país. É o que aponta o militante Rud Sousa, da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). Ele destaca a preocupação com o artigo oitavo da MP 759, que coloca o princípio da competitividade como norteador da regularização fundiária.
“Regular o acesso ao solo através dessa lógica é garantir que os mais pobres estejam cada dia mais vulneráveis no processo dos conflitos urbanos e agrários que envolvem a questão da terra. A política de regularização fundiária é justamente pra fortalecer o conceito da função social da propriedade, mas, na MP, isso é secundarizado e você tem por trás um processo de garantia da grilagem da terra, da especulação imobiliária e outras práticas que garantem que a concentração fundiária se perpetue”, analisa o dirigente.
O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) compartilha da mesma preocupação e destaca o risco de privatização crescente das terras, sobretudo porque o governo vem desvalorizando os lotes e impondo como referência de venda preços que estão abaixo do valor de mercado. Para Alexandre Conceição, da direção nacional do MST, essa política tende a deixar o solo ainda mais vulnerável aos processos de comercialização.
O dirigente também destaca o risco de enfraquecimento dos grupos que travam a batalha pela democratização do acesso à terra. “O elemento central da MP é acabar com o acampado da reforma agrária, com os assentamentos e, como consequência disso, acabar com as organizações que fazem a resistência e promovem a luta pela terra”, afirma Conceição, acrescentando que cerca de 120 mil famílias sem-terra estão hoje acampadas pelo país à espera de um assentamento.
Para o deputado João Daniel (PT-SE), membro do MST e coordenador do Núcleo Agrário do Partido dos Trabalhadores (PT) na Câmara, a MP 759 também compromete a forma como o Estado brasileiro lida com o papel do solo e dos recursos naturais. “A terra deve ser um bem da natureza a serviço das sociedades urbana e rural, e não apenas servir para fazer negócio e especulação imobiliária, como estão querendo”, criticou o parlamentar.
Anistia
Um dos aspectos mais polêmicos da MP 759 é a extensão do prazo dado pelo governo para a regularização de ocupações ilegais. Anteriormente, seriam regularizadas as terras que tivessem sido ocupadas até 2004 e que tivessem pelo menos cinco anos de ocupação. A partir de agora, a tolerância foi estendida e o governo passa a anistiar as ocupações irregulares que foram feitas até cinco anos antes da edição da MP, ou seja, até 2011. Com isso, um número bem maior de posseiros irregulares terá o usufruto legal da terra.
Para o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), essa política tende a estimular a invasão de terras públicas. “Quando você introduz esse tipo de flexibilização, a mensagem que se passa é de que, no futuro, provavelmente novas flexibilizações podem ocorrer, então, eventuais pressões podem levar a novas flexibilizações. Isso é um primeiro sinal que pode indicar uma nova corrida pela grilagem”, assinala a pesquisadora Brenda Brito, do Instituto.
Ministério Público
Para Deborah Duprat, da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), um dos equívocos da MP é tratar a regularização fundiária de forma desconectada da reforma agrária. Ela destaca que essa conduta é proibida pelo artigo 188 da Constituição.
“A medida permite a regularização por mera declaração do ocupante de lotes inferiores a quatro módulos fiscais. Com isso, a gente não sabe se há conflito sobre a área, se ela cumpre a sua função social, se ela tem adequação ambiental, enfim, e ainda se estimula a cultura da grilagem”, aponta a procuradora da República.
Ela acrescenta que a Carta Magna trata a reforma agrária como uma política indispensável para garantir o direito fundamental à moradia e o direito à intimidade, que estariam comprometidos com as novas normativas impostas pela MP. “Todo mundo que tem um lar tem assegurado o seu direito à intimidade. Quem não tem fica sujeito às intempéries da vida, portanto, antes de se doar a terra, é preciso garantir que essa situação no campo esteja completamente resolvida”, defende Duprat.
A procuradora também critica a implementação das mudanças através de medida provisória, uma vez que esse tipo de dispositivo só pode ser adotado pelo chefe do Executivo em casos de urgência. “Estamos falando de algo que existe há mais de 500 anos. Desde a época das capitanias hereditárias já havia uma desorganização em relação aos limites das capitanias, por isso não pode ser considerado como urgente um problema que é estrutural e atravessa a própria história do Brasil”, avalia.
As MPs têm força de lei e efeitos imediatos, devendo apenas ser apreciadas pelo Congresso num prazo máximo de 120 dias para serem convertidas definitivamente em lei.
Edição: Vanessa Martina Silva