Como foi amplamente debatido pela imprensa e pelas redes sociais, uma das primeiras ações do programa “São Paulo Cidade Linda”, da atual administração municipal, foi passar tinta cinza nos grafites e pichações, a exemplo do painel criado por artistas e ativistas na Avenida 23 de Maio. O prefeito de São Paulo colocou em prática uma das propostas defendidas em sua campanha eleitoral.
No debate que se travou sobre essa medida política, que não consultou os artistas e os ativistas responsáveis pelos trabalhos encobertos pela tinta, muitos argumentaram que era necessário limpar a cidade dos grafites já desgastados e das pichações que tornariam a cidade feia e suja. Alguns defenderam a medida argumentando que já era tempo de acabar com a ideia de que São Paulo é uma cidade de ninguém, em que qualquer um pode deixar sua marca nos espaços públicos.
Nem todos aprovaram a decisão da prefeitura, alguns artistas tentaram retirar a tinta cinza dos seus grafites. Um dos oito artistas que não teve seu trabalho encoberto pela tinta cinza, Eduardo Kobra afirmou que seus grafites na Avenida 23 de Maio deveriam ter o mesmo fim que os demais. A filósofa, poetisa e ativista Maria Vilani organizou no Centro de Arte e Promoção Social (CAPS), no Grajaú, um debate sobre a importância das pichações como manifestação política.
Entre os comentários veiculados pelas redes sociais em defesa ao atual prefeito e aos gestores responsáveis pelas áreas da limpeza e da cultura, há aqueles que apoiam a manutenção ou mesmo a criação de novos grafites nos espaços públicos, mas eles também são a favor da perseguição policial implacável aos pichadores. Seguindo a sugestão da Maria Vilani, gostaria de tecer algumas reflexões sobre a importância das pichações no horizonte político de uma cidade.
Num trabalho fundamental sobre os movimentos estudantis dos anos 60, Paris 1968: as barricadas do desejo, a filósofa Olgária Matos analisa algumas frases pichadas em maio daquele ano em diversos lugares da capital francesa.
Por pouco mais de um mês, jovens universitários e secundaristas promoveram greves nas escolas, produziram e distribuíram panfletos, organizaram assembleias e passeatas, ocuparam salas e auditórios das suas universidades e enfrentaram, com barricadas, a repressão policial. Seus sonhos, desejos e pensamentos foram pichados nos muros de Paris.
Algumas frases eram citações de grandes autores, outras, criações anônimas que retratavam o espírito do movimento: “sejamos realistas, exijamos o impossível”; “limpeza = repressão”; “nosso modernismo não passa de uma modernização da polícia”; “você está sendo intoxicado: rádio, televisão, jornal, mentira”; “viver sem horas mortas, gozar sem entraves”; “a liberdade do outro amplia a minha ao infinito (Bakunin)”; “abrir as portas dos asilos, das prisões e outros liceus”; “a imaginação no poder”;“a poesia na rua”; “mude a vida, transforme seu manual do usuário”; “embaixo do calçamento está a praia”; “insurreição pelo signo”; “é proibido proibir: lei de 10 de maio de 1968”, etc.
Para Olgária Matos, as pichações, que os franceses chamam de graffitis, “dão uma nova dimensão à cidade, e dela se reapropriam”. A maior parte das pichações de São Paulo não trazem frases e ideias inspiradoras. Elas apenas registram o nome do pichador, o que pode ser, ainda assim, um ato político importante, como a pichação do protagonista do último filme de Ken Loach: “Eu, Daniel Blake”. Sem dúvida, tanto os grafites quanto as pichações são manifestações artísticas e políticas necessárias numa sociedade marcada por inúmeros dispositivos de silenciamento.
*Embora a língua formal considere a palavra "pixo" incorreta, é assim que grande parte dos pichadores gostam de se referir às suas intervenções.
**Paulo Henrique Fernandes Silveira - É docente do Departamento de Metodologia do Ensino e Educação Comparada. Orientador de mestrado e de doutorado na área temática "Filosofia e Educação" junto ao Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Coordena o "Grupo de Estudos sobre Educação, Filosofia, Engajamento e Emancipação", veiculado à FEUSP e ao CNPQ.
Edição: Juliana Gonçalves