Soberania

Análise: O embate entre Guaranis e multinacionais pelas propriedades da Stevia

Há uma tensão entre exigir o compartilhamento dos lucros sobre a Stevia e promover uma liberdade das sementes

Bruxelas (Bélgica), especial para Brasil de Fato |
Em teoria, seria, então, preferível responder às desigualdades vivenciadas pelos Guarani sem ter que recorrer à propriedade intelectual
Em teoria, seria, então, preferível responder às desigualdades vivenciadas pelos Guarani sem ter que recorrer à propriedade intelectual - Divulgação

Consideremos dois combates. De um lado, aquele dos Guarani do Brasil e do Paraguai, que reivindicam o compartilhamento dos lucros ligados à utilização da Stevia. As multinacionais têm a utilizado para adoçar os produtos alimentares. Os Guarani afirmam que a Stevia lhes pertence, os seus ancestrais tinham descoberto as suas propriedades. Não se trata aqui de impedir um uso comercial, mas sim de reivindicar uma parte dos seus lucros. Para tanto, é usada a categoria de propriedade intelectual dos saberes tradicionais, tendo como base a Convenção de Nagoya. E se faz para melhorar as chances das populações desamparadas. 

De outro lado, tal como a associação Kokopelli, há a defesa do oposto, a saber, a produção livre das sementes, compreendendo as campanhas do tipo “sementes sem fronteira” para o proveito dos camponeses do sul. Este combate foi conduzido contra as multinacionais de sementes que tentam limitar por meios tanto biológicos (generalização de híbridos ditos “F1”) quanto jurídicos (acirramento do sistema de proteção das variedades vegetais, extensão da patenteabilidade de vida, ...), os diversos usos das sementes, como a possibilidade de um camponês ressemear as sementes que ele mesmo produziu.

Ao passo que os Guarani sustentam a categoria da propriedade intelectual para o proveito dos mais pobres, outros pensam que esta mesma preocupação exige o contrário, ou seja, limitar o campo da propriedade intelectual. Esta objeção nos convida a pensar a articulação entre os direitos de propriedade e a luta contra as desigualdades, em particular o domínio do acesso aos recursos alimentares vegetais. 

Lembremos que nós tratamos aqui de bens “não rivais”: o seu consumo por uma pessoa não impede que outra a consuma. A multiplicação de uma planta se assemelha mais ao download de um arquivo MP3 que com a consumação de uma maçã. Se eu como uma maçã, eu impeço outra pessoa de a comer. Se eu multiplico um material genético, eu não impeço a outra pessoa de multiplicá-lo. Tanto o material genético vegetal quanto os saberes ligados ao seu uso são “não rivais”. 

Por conseguinte, justificar a propriedade intelectual diante da variedade de maçãs exige mais que justificar a propriedade sobre uma das frutas dessa variedade. E se somos céticos em relação à extensão do direito do autor 70 anos após a sua morte, podemos também sê-lo em relação às reivindicações de propriedade intelectual dos saberes imemoriais. Em princípio, se deveria então contestar as reivindicações de compartilhamento de benefícios tais como essas dos Guarani. Isso não implica uma indiferença à sua situação. As desigualdades a que eles são expostos deveriam antes ser levadas em consideração por outros mecanismos: uma redistribuição reforçada em seu país e no nível mundial, financiada por todos, e não somente pelos utilizadores da Stevia.

Em teoria, seria, então, preferível responder às desigualdades vivenciadas pelos Guarani sem ter que recorrer à propriedade intelectual. Isso não pressupõe aliás a ideia de estrita divisão do trabalho entre as políticas redistributivas (fiscais, por exemplo) e outras que não deveríamos nos preocupar. Isso diz respeito simplesmente a exigir que um regime de propriedade intelectual seja coerente.

Parar por aqui seria, contudo, esquecer que na prática, as vias alternativas de redistribuição não são acessíveis hoje. Em tal contexto, nós somos reduzidos a improvisar as soluções “de segunda linha”, como essa do compartilhamento de benefícios da Stevia. Preocupar-se com a justiça em um mundo real implica que nós aceitemos este tipo de remédio e que o defendamos. Mas é crucial clarificar a natureza dos argumentos, a fim de não “confundir ainda mais o assunto”, sobre o que a justiça exige. Uma coisa é afirmar que existe um argumento “profundo” em favor do direito de propriedade de um bem. Outra é dizer que esse regime de propriedade é aceitável se outras vias redistributivas estão bloqueadas.

Improvisar com as regras sem deixar claro os princípios subjacentes é arriscar confundir o cidadão sobre o que a justiça impõe. E é só mediante uma tal clareza que podemos manter uma coerência entre as reivindicações dos Guarani e essas dos defensores da liberdade das sementes.

 *Professor da Université Catholique de Louvain, pesquisador do Fundo de pesquisa científico da Bélgica (FNRS), responsável pela Chaire Hoover d’éthique économique et sociale, na Bélgica.

**Doutoranda da Université Catholique de Louvain, na Bélgica. O texto foi publicado originalmente em francês em 4 fevereiro de 2017, pelo jornal belga "La Libre".

Edição: Camila Rodrigues da Silva